domingo, 12 de setembro de 2010

Agrippino, Salomão e Sana Khan

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Agrippino Grieco, na caricatura de Moura
Conta o mestre Fernando Jorge que na década de 40, causavam sensação as palestras que o crítico literário Agrippino Grieco realizava em parceria com seu amigo, o poeta Salomão Jorge, pai de Fernando. Agrippino começara sozinho, vendendo por sua conta os ingressos. O trabalho, estóico mas ineficaz, não rendia nada, e Agrippino acabava sempre ganhando uma ninharia por suas palestras, que versavam sobre literatura. Quando soube disso, o astuto Salomão lhe propôs uma sociedade: cuidaria da parte comercial, vendendo as palestras para prefeituras de cidades do interior que possuíssem alguma verba cultural ociosa, para que nenhum dos dois precisasse se preocupar com venda de ingressos, e o poeta passava a fazer parte do pacote, palestrando antes de Agrippino, sobre poesia. O crítico topou a parada e os dois saíram pelo interior de São Paulo promovendo discussões literárias. Falavam em teatros, prefeituras, clubes e escolas, para os mais variados tipos de assistência.

Encontravam revezes em alguns lugares. Determinado prefeito recebeu-os com cordialidade, mas abriu seus livros e lamentou o curioso fato de que a única verba que possuía no momento era para o caso de ter que decretar estado de calamidade pública. O que se mostrava um poderoso impedimento para o prefeito não pareceu incomodar muito o ácido crítico e o poeta descendente de sírios:

— Então faremos a palestra com a verba para calamidade pública! É bem a propósito, inclusive — disse Agrippino, resoluto.
— Podemos até discorrer sobre o assunto, se for necessário... — acrescentou Salomão, solícito.

O quiromante Sana Khan

O folclórico quiromante Sana Khan (lembrado até hoje pela estrambótica profecia sobre a carreira política de Jânio Quadros), vendo nisso uma oportunidade de aparecer, e visando os cobres que a dupla de literatos amealhava em suas palestras pelo interior paulista, resolveu procurar Salomão Jorge e pediu-lhe a permissão para viajar junto com eles. Disse que falaria pouco, e que apenas colocaria seus dotes de quiromante à disposição do público, lendo mãos e respondendo perguntas. Salomão consultou Agrippino, que abominava o adivinho:

— Salomão, não convide este impostor para participar de nossas conferências, senão vamos ficar desmoralizados! Ele não passa de um intrujão, um parlapatão! Ele só quer ganhar dinheiro às nossas custas!

Não adiantou. O poeta conseguiu convencê-lo de que a presença de Sana Khan adicionaria um toque metafísico às conferências, e que a procura por elas poderia aumentar. Agrippino aceitou, de muita má-vontade, mas advertiu o amigo:

— Tome cuidado. Depois de apertar a mão dele, conte os dedos!

Certa vez, Salomão providenciou uma palestra em uma cidade cuja maior colônia estrangeira era de sírios-libaneses. Muito bem-pago pelos endinheirados comerciantes e também pertencente à colônia, o poeta preparou com denodo o discurso de abertura da conferência, que precederia seu costumeiro arrazoado sobre poesia. Começou, num tom candente e emocionado:

— Meus amigos! A França deu Voltaire, Victor Hugo, Balzac!...A Itália deu Carducci, Dannunzio, Dante Alighieri!...

Agrippino, que se encontrava do lado de fora da sala onde a palestra era pronunciada, aguardando sua vez, ouviu as últimas palavras de Salomão e decidiu escutá-lo. As frases do poeta iam num crescendo que envolvia o público:

— A Espanha deu Cervantes, Unamuno!...A Inglaterra deu Shakespeare! Os Estados Unidos, Lincoln!

Os sírios prestavam absoluta atenção nas palavras de Salomão. Estavam de olhos pregados no poeta. Agrippino começou a ficar tenso. A oração de Salomão parecia não chegar a lugar algum. O crítico olhava o público, que fitava o orador, e olhava o orador, que prosseguia inabalável em suas colocações:

— O Brasil nos deu Castro Alves, Ruy Barbosa!...

Alguns presentes sorriram, assentindo à escolha acertada dos nomes ilustres da pátria que os acolhera. Mas Salomão não havia terminado. De sopetão, lançou aos presentes esta pergunta:

— E a Síria? Que grande homem deu a Síria?

Agrippino começou a tremer. Em sua imensa cultura, desdobrava-se mentalmente mas não conseguia sequer imaginar qualquer personagem célebre que tivesse saído da Síria. O público assistia Salomão com os olhos vidrados, não apenas absorto por sua brilhante oratória, mas agora esperando ansiosamente sua peroração, que veio em seguida, cheia de suspense:

Salomão Jorge, na caricatura
de Aldemir
— A Síria deu o maior de todos os homens! Maior do que Victor Hugo, maior do que Dante, maior do que Shakespeare, maior do que Ruy Barbosa!

Agrippino já não olhava mais. Procurava prender a respiração, para frear a batedeira de seu coração. Sabia que uma única idéia mal-interpretada sobre o amado país de origem de 99% dos presentes seria o suficiente para que os dois fossem linchados. Por fim, Salomão concluiu:

— A Síria deu, meus amigos...Nosso Senhor Jesus Cristo!

Por um momento houve um silêncio monstruoso. O público ficou apatetado diante da afirmação bombástica do poeta. Agrippino permanecia inerte, olhando para baixo, suando em borbotões. Salomão permanecia de braços abertos, sorrindo, depois de declarar que Jesus era sírio. De repente se ouviu um aplauso tímido no fundo da sala. Depois outro, mais forte. Mais um, de alguém na frente, e outro, e outro, e em poucos segundos um estrondo maciço de palmas varreu o recinto. Os sírios levantaram-se para aplaudir Salomão com todas as suas forças, acompanhando as palmas com “bravos” e gritos de êxtase:

— Ooooohhhhhhhh....Aaaaahhhhhhhhh...

Do lado de fora, Agrippino quase enfartara. Despencou sobre uma cadeira e respirou aliviado, enxugando o suor. Logo depois entrou e pronunciou sua palestra, também fartamente aplaudida, e no fim Sana Khan divertiu a platéia lendo a mão dos presentes. Na saída, um sírio se aproximou de Agrippino. Ainda estarrecido com a revelação do poeta, perguntou:

— Doutor Agrippino, é verdade, como disse o doutor Salomão, que Jesus Cristo era sírio?
— Bem, bem, meu amigo — respondeu Agrippino com sua magnífica comicidade — isso eu não posso afirmar com toda a certeza. Mas aqueles dois que morreram ao lado Dele, na cruz, não resta dúvida de que eram sírios!

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