Acima: Michael Redgrave, Rosemary Harris e Laurence Olivier. Abaixo: Irina Miroshnichenko, Sergey Bondarchuck e Innokenti Smoktunovsky |
Stanislavsky no papel de Astrov, 1899 |
Em fins de
1889 estreou no Teatro Abramov, de Moscou, a peça Леший, do dramaturgo russo
Anton Tchekhov. A montagem fracassou miseravelmente na bilheteria e foi
retirada imediatamente do cartaz. Não me resta dúvida de que o fracasso da peça
começa pelo nome, Леший — “Leshiy”, literalmente — que nas mitologias eslava e
russa significa um duende ou um espírito em forma humana, que protege a
floresta e seus animais. Nada menos convidativo, em se tratando de um autor
conhecido por textos onde se discute a complexidade da alma humana de forma
perspicaz e profunda. Não deve ser à toa que na tradução inglesa o texto ganhou
o título de “The Wood Demon”, “O Demônio de Madeira”, muito mais atraente,
embora, com efeito, nada tenha a ver com o que o autor pretendia transmitir,
como veremos mais adiante.
Em todo
caso, certo de que a idéia era boa e o problema estava no texto e em sua
execução, Tchekhov passou os anos seguintes reescrevendo-o. Cortou e refundiu personagens,
enxugou falas, adicionou sete anos de novas experiências e investigações sobre
o ser humano e por volta de 1896 já estava pronto o novo texto, em quatro atos,
rebatizado de Дядя Ваня — Сцены из деревенской жизни (“Tio Vanya — Cenas da
vida rural”). O “Vanya”, ou “Vânia”, tão incompreendido entre os ocidentais,
nada mais é do que o apelido que os russos dão a qualquer pessoa que se chama
“Ivan”, como é o caso do personagem que dá nome à peça, Ivan Petrovitch
Voynitsky. Ele é tio de Sofya (cujo apelido, por sinal, é “Sonya”), filha única
de sua irmã falecida. Ambos vivem na propriedade deixada de herança à Sonya por
seu avô, pai de Ivan. Lá também vivem a mãe de Ivan, Mariya Vassilyevna, a velha
criada Marina Timofeyevna e o amigo e agregado Ilya Ilyitch Telegin.
Roschin-Insarov, um dos primeiros Vanyas. Meses depois de sua performance ele foi assassinado por um psicopata apaixonado por sua esposa |
Vanya e Sonya
administram a fazenda e tudo que ganham pela venda de legumes e demais
alimentos cultivados por lá eles mandam para o pai de Sonya e ex-cunhado de
Vanya, o professor Alexandr Serebryakov. Quando a peça se inicia ficamos
sabendo que embora idoso e doente, o professor se casou em segundas núpcias com
uma mulher linda e muito mais jovem, Yelena Andreyevna, por quem Vanya se
apaixonou perdidamente, e o casal está passando uma longa temporada com eles na
fazenda. Por conta dos problemas de saúde do professor, é constantemente
chamado o médico da família, Mikhail Lvovitch Astrov, por quem Sonya é
apaixonada. O que acontece nos meses seguintes é o tema de Tio Vanya.
Em 1897
Дядя Ваня foi publicado e ao contrário do que se imagina, não ficou inédito até
que Konstantin Stanislavsky e Vladimir Nemirovich-Danchenko o encenassem no MXAT
— Teatro de Arte de Moscou, dois anos depois. Enquanto não chegou à capital, Vanya teve várias montagens pelas
províncias russas, com as mais variadas companhias teatrais. A primeira delas
ocorreu no mesmo ano em que o livro foi editado, na cidade de Rostov-on-Don. A
peça teve direção de Nikolai Sinelnikov e o primeiro Vanya foi, efetivamente, o
ator Ivan Mikhailovich Shuvalov. Outra montagem pré-Stanislavsky ocorreu em
Kiev, em 1898, na companhia de Mikola Solovtsov, com direção do famoso ator Yevgeniy
Nedelin (Евгений Неделин), que também interpretava Astrov, e trazendo Nikolai
Roshchin-Insarov no papel-título. O jovem ator Mikhail Frantsevich
Lenin (do Teatro Maly) consignou em suas memórias, “Anton Pavlovitch assistiu
esta performance e disse que eles interpretaram brilhantemente”.
Tchekhov e Gorki em Ialta, 1900 |
O autor estava
surpreso e feliz com o sucesso de Vanya.
Um sucesso que ele mesmo afirmou não esperar, em carta ao irmão: “Meu Tio Vanya atravessa as províncias e é um
sucesso por toda parte. É claro que não se sabe onde ela dará certo e onde
perderá. Eu não contava com esta peça em absoluto”.
Em
novembro de 1898 quem escreveu a Tchekhov sobre Tio Vanya foi seu amigo Maksim Gorky, que assistiu a peça em sua
cidade-natal, Nizhny Novgorod. O futuro romancista, que ainda não produzira
obras-primas como Os Pequenos Burgueses
e A Mãe, ficou muito tocado pela obra:
"Assisti Tio Vanya outro dia;
assisti e chorei como uma mulher”.
Tchekhov e Olga Knipper, que interpretou o papel de Yelena, e com quem o autor se casou, dois anos depois |
Stanislavsky e Nemirovich-Danchenko fundaram o Teatro
de Arte de Moscou em outubro de 1898 e nessa época andavam às voltas com a
encenação de A Gaivota, que vinha
alcançando um sucesso maior do que qualquer outro que Tchekhov experimentara
até o momento. Vanya foi a peça do autor escolhida para suceder A Gaivota, com
estréia marcada para outubro de 1899. Inicialmente Stanislavsky quis para si o
papel-título mas acabou demovido por seu sócio, que não o via com physique du
rôle para interpretar Vanya. Coube-lhe então o papel de Astrov, para o desgosto
de Tchekhov, que não aprovara sua performance como Trigorin no texto anterior e não comungava do fascínio geral por Stanislavsky, seja como ator ou
diretor. Gostava menos ainda que ele assumisse as duas funções. "Injete-lhe alguma testosterona!", recomendou o autor por carta a Nemirovich-Danchenko, descrente da capacidade de Stanislavsky de transmitir a energia sexual necessária ao médico. O resto do
elenco teve Aleksandr Vishnevsky (Vanya), Vasiliy Luzhsky (Alexandr), Olga
Knipper (Yelena), a esposa de Stanislavsky, Maria Lilina, no papel de
Sonya, Yevgeniya Raevskaya (Mariya
Vassilyevna), Alexandr Artiom (Telegin) e Maria Samarova (Marina).
A peça
teve um sucesso moderado, não recebendo de cara a recepção calorosíssima
dedicada à Gaivota. O êxito foi
gradual. A reação das platéias foi melhorando e se tornando mais entusiástica à
medida que a temporada seguiu seu curso e a performance dos atores foi
amadurecendo. Tchekhov assistiu o espetáculo meses depois, já no século XX,
quando a companhia passou pela Criméia. Ele estava em Ialta, para cuidar de sua
tuberculose e deslocou-se até a cidade vizinha de Sebastopol, onde a companhia se
encontrava. Em seu célebre Minha Vida na
Arte, Stanislavsky relembrou a apresentação de Vanya que contou com seu criador na platéia: “O sucesso foi
extraordinário. Chamaram o autor ao palco uma infinidade de vezes e de forma
desmedida”. O grande autor, satisfeito com o resultado final de Vanya, nos deu mais duas obras-primas — As Três Irmãs e O Jardim das Cerejeiras — e morreu em 1904, com apenas 44 anos.
Aleksandr Vishnevsky (Vanya), em foto de uma remontagem de 1911 |
Muito,
evidentemente, já foi escrito sobre Vanya
e sobre toda a obra do grande gênio que foi Anton Pavlovitch Tchekhov. Mas não
me furto de deixar algumas impressões porque acredito que Vanya é um monumento dramatúrgico, literário e filosófico. Como
toda obra-prima, está adiante de seu tempo e as questões que levanta são de
apelo eterno.
O mote da
peça é a frustração compartilhada por 90% dos personagens. Frustração pessoal,
profissional, espiritual e amorosa. Vanya está em plena crise de meia-idade e
se desespera ao perceber que desperdiçou seus melhores anos admirando a cultura
de seu cunhado — a quem ele agora considera um farsante, megalômano e burro — e
trabalhando para que esse cunhado tivesse uma vida confortável, mesmo depois de
viúvo e casado novamente. E tudo a custo de seu conforto e o de sua sobrinha,
deixando de lado, inclusive sua própria ambição de tornar-se um homem de
letras. Sua mãe lhe dá verdadeiro coup de
grâce quando, em meio a seu desabafo sobre aquilo que poderia ter feito na
juventude e para o qual já não havia mais tempo, ela replica, com
tranqüilidade, que a culpa era dele, única e exclusivamente, e que os ideais
não são nada sem que se faça, concretamente, alguma coisa com eles (Ты точно обвиняешь в чем-то свои прежние убеждения... Но виноваты не они, а ты сам. Ты забывал, что убеждения сами по себе ничто, мертвая буква... Нужно было дело делать), o que nos remete vagamente à conclusão do To be or not to be: “And thus the native
hue of resolution is sicklied o'er with the pale cast of thought, and
enterprises of great pith and moment with this regard their currents turn awry,
and lose the name of action”.
Aleksandr Vishnevsky |
Solteiro, sem perspectivas e sem amor-próprio, Vanya passa os dias idolatrando Yelena com a paixão melosa e melancólica de um adolescente, mesmo sabendo que ela o considera um pobre infeliz e jamais retribuiria seu amor.
A cena da bebedeira com Alexandr Artiom (Telegin), Stanislavsky (Astrov) e Aleksandr Vishnevsky (Vanya), 1899 |
Aleksandr Vishnevsky (Vanya) e Maria Lilina (Sonya), 1899 |
O Astrov de Stanislavsky, 1899 |
Astrov —
provável alterego de Tchekhov — é um dos mais excepcionais personagens da
dramaturgia mundial. Mais do que um visionário, ele é clarividente. Em 1896 é
um médico proletário, vegetariano e ambientalista, acusando a destruição das
florestas com oito décadas de antecedência. Passou seus quarenta anos trabalhando
como um condenado, entre a saúde da sofrida população rural russa e o
reflorestamento de áreas que o progresso descontrolado foi desmatando. O
monólogo em que Sonya elogia a dedicação do médico à causa das florestas, o
outro no qual Astrov exibe seus desenhos à Yelena, mostrando a devastação de áreas
verdes nos últimos cinqüenta anos, e todos os seus conceitos sobre a morte dos rios, a mudança do clima, o fato do
homem destruir não pelo progresso mas pelo simples enriquecimento, e destruir aquilo que não poderá substituir, são a base de tudo aquilo que hoje se ensina e se prega como ecologia e preservação do meio-ambiente.
A
frustração de Astrov é paradoxal. Profissionalmente ele se considera esgotado
mas parece apreciar a medicina, apesar de tudo. E as florestas são uma causa à
qual ele se dedica com grande paixão.
Maria Lilina (Sonya) e Stanislavsky (Astrov), 1899 |
Sonya (Maria Lilina), 1899 |
Em termos pessoais ele é assombrado por certa misantropia — diz abertamente à Sonya não gostar de gente e não ter qualquer admiração pelo povo mais pobre — mas é capaz de se deprimir quando lembra que um paciente seu morreu em seus braços. Ele ama a vida, em termos amplos e se deixa fascinar pela beleza. Astrov está vivo. Só que está, como todos os outros, preso a uma mesmice da qual não consegue mais sair. Ou está acomodado demais para tentar sair.
Sonya é, talvez, a grande vítima de toda a história. Órfã de mãe desde os nove anos e ignorada pelo professor, que mora na cidade grande com a esposa ridiculamente mais nova, ela passou sua vida na fazenda, trabalhando com o tio desde criança para que os proventos do local fossem religiosamente enviados ao pai. É “sem graça” fisicamente (Некрасива), ama Astrov desde os catorze anos sem que ele sequer repare que ela existe, e é obrigada a testemunhar diariamente o efeito absurdo que Yelena tem, sem fazer qualquer esforço, sobre todos os homens que a conhecem. Aceita a vida com total resignação e equilíbrio, entretanto. É a única voz da razão, entre todos.
Sonya é, talvez, a grande vítima de toda a história. Órfã de mãe desde os nove anos e ignorada pelo professor, que mora na cidade grande com a esposa ridiculamente mais nova, ela passou sua vida na fazenda, trabalhando com o tio desde criança para que os proventos do local fossem religiosamente enviados ao pai. É “sem graça” fisicamente (Некрасива), ama Astrov desde os catorze anos sem que ele sequer repare que ela existe, e é obrigada a testemunhar diariamente o efeito absurdo que Yelena tem, sem fazer qualquer esforço, sobre todos os homens que a conhecem. Aceita a vida com total resignação e equilíbrio, entretanto. É a única voz da razão, entre todos.
Olga Knipper (Yelena), 1899 |
A sedução de Yelena, com Stanislavsky (Astrov), Yelena (Olga Knipper) e Alexandr Vishnevsky (Vanya), 1899 |
Vasiliy Luzhsky (Alexandr), 1899 |
Olga Knipper (Yelena) e Vasiliy Luzhsky (Alexandr), 1899 |
"Você arruinou a minha vida!"... |
"Vocês se lembrarão de mim!"... |
Alexandr Artiom (Telegin), 1899 |
Tchekhov
foi genial na reciclagem de Leshiy. Tudo
que ele mudou, mudou para melhor. Tudo que ele descartou, era inútil. O texto era
tão anacrônico que, no melhor estilo de Polônio, quando anuncia as peças da
companhia que chegou a Elsinore, poderia ser caracterizado como uma “tragédia
leve”. Falta graça e sentimento. Todos os personagens são atrabiliários e
desagradáveis.
O título
original não fazia referência a Vanya (Yegor) e sim a Astrov (Mikhail Lvovich
Khrushchov). O tal “espírito da floresta” é como os personagens chamam o
médico, por sua defesa histérica e irracional das florestas, que não tem nada
do romantismo e da sensibilidade daquela empreendida por Astrov. Ele é sisudo,
moralista — a magnífica cena de Vanya entrando com as flores e vendo sem querer
o beijo de Astrov e Yelena vem de uma cena curta e insípida de Leshiy, em que Khrushchov vê Yegor
beijando a mão de Yelena e lhe dá uma bronca como se fosse um padre que pegou
um casal de alunos namorando — e seu engajamento à causa ambiental é
seriíssimo. A atração entre o médico e Yelena não existe e quem tenta seduzi-la
(sem sucesso) é um personagem colateral chamado Fédor, jovem mulherengo e
inconsequente que não faz nada além de jogar e beber. Da fusão de Khrushchov e
Fédor, subtraindo a chatice e adicionando humor e coração, temos Astrov.
Tchekhov e Artiom, em 1899. O personagem Telegin ("Waffles"), ficou tão famoso que o ator o interpretou até sua morte, em 1914 |
Segundo Nemirovich-Danchenko, Tchekhov não gostava que as pessoas comparassem Leshiy a Dyadya Vanya, que afirmava ser "uma peça completamente independente". Não era. E com a oportuna transformação de uma na outra, o autor abandonou um texto de gênero inqualificável, mal-acabado mas cheio de potencial, e legou à posteridade — posteridade a que seus personagens sempre aludem, seja daqui a cem, duzentos ou mil anos — uma obra-prima de percepção e sensibilidade. Poucos textos têm um espelho tão acurado da humanidade. É possível nos identificarmos com todos os personagens de Vanya, sem exceção, em um momento ou outro. E será, eternamente.
**********
Franchot Tone interpretando Astrov, off-Broadway, em 1956 |
Encontrei quase que acidentalmente o Onkel Vanja dirigido por Gerhard Knoop para a TV norueguesa, com tradução de Claes Gill. No elenco estão Lars Nordrum (Astrov), Arne Lie (Vanja), Liv Strømsted (Elena), Per Gjersøe (Serebrjakov) e a linda e jovem Liv Ullmann no papel de Sonja. Foi ao ar em setembro de 1963, dois meses antes da versão de Olivier em Chichester, como veremos mais à frente, mas não o comentarei aqui porque o artigo fala de artistas que tiveram mais de um contato com Vanya, ao longo dos anos (eu sabia disso, aliás, apenas em relação a Olivier; no que tange a Smoktunovsky, Hopkins e Mamet, foi uma total coincidência); ele deverá figurar, entretanto, em artigo futuro sobre outras montagens de Vanya pelo mundo, junto ao iugoslavo Ujka Vanja de Jerzy Antczak, outro Dyadya Vanya, desta vez dirigido por Georgy Tovstonogov, e assim por diante.
Um Vanya prematuro, em 1927 |
O Vanya de
Laurence Olivier
Laurence Olivier
Me refiro evidentemente às montagens de Uncle Vanya das quais Olivier participou, porque o papel-título ele só fez uma vez.
Até onde sei, Tio Vanya foi montado na Inglaterra a partir de 1914 e teve três ou quatro montagens até 1927, quando entrou no repertório de uma companhia de Birmingham da qual fazia parte, em início de carreira, o jovem Laurence Olivier. Durante o pouco tempo em que participou dessa companhia, Olivier esteve em quinze peças sem maior importância, com exceção de Uncle Vanya, encenada em abril, na qual interpretou o papel-título com direção do irlandês William G. Fay. A tradução era de Constance Garnett. No elenco estavam veteranos como William Pringle (Alexandr), Charles Leighton (Telegin) e Maud Gill (Mariya) e principiantes como ele, que viriam a alcançar mais ou menos sucesso no teatro e no cinema nas décadas seguintes, como Stringer Davis (Astrov), Dorothy Turner (Yelena) e Jane Welsh (Sonya). Pouco se pode dizer dessa montagem, que só é lembrada hoje pela presença inusitada e inteiramente equivocada de Olivier. Para que se tenha uma idéia, Vanya tem quarenta e sete anos. Olivier tinha dezenove. Yelena tem vinte e sete anos. Dorothy tinha trinta e sete. O grande amor de Vanya tinha quase vinte anos a mais do que ele. Sônia tem vinte anos. Jane Wesh tinha vinte e dois, portanto era três anos mais velha que seu tio. E assim por diante.
Até onde sei, Tio Vanya foi montado na Inglaterra a partir de 1914 e teve três ou quatro montagens até 1927, quando entrou no repertório de uma companhia de Birmingham da qual fazia parte, em início de carreira, o jovem Laurence Olivier. Durante o pouco tempo em que participou dessa companhia, Olivier esteve em quinze peças sem maior importância, com exceção de Uncle Vanya, encenada em abril, na qual interpretou o papel-título com direção do irlandês William G. Fay. A tradução era de Constance Garnett. No elenco estavam veteranos como William Pringle (Alexandr), Charles Leighton (Telegin) e Maud Gill (Mariya) e principiantes como ele, que viriam a alcançar mais ou menos sucesso no teatro e no cinema nas décadas seguintes, como Stringer Davis (Astrov), Dorothy Turner (Yelena) e Jane Welsh (Sonya). Pouco se pode dizer dessa montagem, que só é lembrada hoje pela presença inusitada e inteiramente equivocada de Olivier. Para que se tenha uma idéia, Vanya tem quarenta e sete anos. Olivier tinha dezenove. Yelena tem vinte e sete anos. Dorothy tinha trinta e sete. O grande amor de Vanya tinha quase vinte anos a mais do que ele. Sônia tem vinte anos. Jane Wesh tinha vinte e dois, portanto era três anos mais velha que seu tio. E assim por diante.
O Vanya de Ralph Richardson, 1945 |
O Astrov de Olivier, 1945 |
Este é o
elenco da montagem, além de Larry e Ralph: Ena Burrill (Marina), Bryony Chapman
(Mariya Vassilyevna), Harcourt Williams (Alexander), Margaret Leighton (Yelena),
Joyce Redman (Sofya), George Relph (Telegin) e William Monk no pequeno papel do
criado Yefim.
As
memórias de Olivier (Confessions of an
actor, 1982) são interessantes porque a vida de Olivier foi interessante,
mas o livro em si, redigido em parte usando os diários que o ator guardava,
peca onde sempre pecaram os grandes artistas que se aventuraram pelo gênero
(Chaplin é o número um dessa lista): falta total de distanciamento e
perspectiva sobre sua própria obra. Para dar um exemplo referente a essa
temporada, Olivier gasta páginas para falar de suas acrobacias (e conseqüentes
acidentes) na comédia The Critic. Mas
dedica um único parágrafo à Vanya, e
somente para dizer que, lançada “no início da primavera” de 1945, “não obteve a
mesma calorosa acolhida a que nos tínhamos habituado e que começávamos a
esperar, de modo que após vinte e um espetáculos que nunca chegaram a se
ajustar plenamente, nós o retiramos de cartaz, com pena e com carinho,
guardamos tudo entre camadas de algodão e uma ou duas bolas de naftalina, e
acomodamos em uma prateleira confortável e acolhedora”.
Margaret Leighton (Yelena), Olivier (Astrov) e Ralph Richardson (Vanya), 1945 |
Programa do Old Vic, em 1946, trazendo as fotos de Olivier (Édipo) e Richardson (Falstaff) |
Nem uma
palavra sobre a composição do personagem, sobre o texto, sobre sua evolução
desde o primeiro contato com Tchekhov, em 1927, nada. Ainda errou a data: Vanya estreou em pleno inverno, em
janeiro de 1945. Quando Olivier fala de uma estréia no início da primavera refere-se
à segunda temporada do Vic, no ano seguinte, que voltou a incluir Vanya. Harcourt Williams foi substituído
por Nicholas Hannen (ambos participaram do Henrique V que Olivier acabara de filmar) e em abril o elenco foi
de mala e cuia para Nova York, onde apresentou todo o repertório no New Century
Theatre, de 13 de maio a 22 de junho. Mais uma vez, Olivier comenta, em suas
memórias, que “a temporada de oito semanas em Nova York foi recebida com o
mesmo entusiasmo que em Londres”, fala da maravilha que era o Falstaff de
Ralph, da visita de sua esposa Vivien Leigh, de perrengues financeiros, e nem
uma palavra sobre Vanya. É difícil
compreender qual o problema de Olivier com a peça ou a razão de seu silêncio
sobre o assunto, porque a crítica norte-americana adorou a adaptação e,
sobretudo, o Astrov feito por ele.
Vanya devolve a morfina: Olivier (Astrov), Ralph (Vanya e Sonya (Joyce Redman), 1945 |
Eis o que disse no dia 19 de maio o crítico
Lewis Nichols, do New York Times:
Já que a primavera deu um presente não
solicitado, ao que parece, a Laurence Olivier [refere-se
provavelmente a um acidente em que o ator despencou de grande altura, caindo no
palco, em cena acrobática malsucedida durante matinê de The Critic, dias antes], que
esta nota deixe consignado que seu Astrov é excelente. Sua interpretação do médico
é calma e simples, e tem um toque de humor que é intrínseco e não externo.
(...) Nenhum momento da peça está abaixo dele ou é estranho à Nova York,
Londres ou ao teatro de 1946. Ralph Richardson também tem uma boa performance
como Voynitsky, o cunhado, um flácido, lúgubre saco de nervos e decepções.
Margaret Leighton, em bela foto colorida de sua caracterização como Yelena |
Claudia
Cassidy, em crítica de 16 de junho no Chicago
Sunday Tribune vai mais longe, e além de seu elogio a Olivier beirar a
tietagem, ela ainda destaca Vanya
como o melhor espetáculo da temporada do Vic em Nova York:
Embora o Astrov do Sr. Olivier seja seu fator
de motivação — o homem a quem você olha quando está no palco e a quem você
procura quando não está — o Vanya do Sr. Richardson tem a qualidade
peculiarmente assombrada de frustração russa e houve boas cenas entre a
longilínea Margaret Leighton, uma beleza com pescoço de cisne (...) e Joyce
Redman, cuja rejeitada Sonya foi tão autoritariamente reprimida quanto sua Doll
Tearsheet [uma prostituta, personagem de Joyce na segunda parte de Henrique IV] foi vulgarmente exuberante. Não entendo a explosão farsesca que a
direção de John Burrell fez do clímax do segundo ato, mas fora isso, este “Tio
Vanya” está na minha lista! Espero que o Old Vic traga mais espetáculos assim
quando e se voltar na próxima temporada, com mais tempo para uma turnê.
Não sei o
que Claudia não entendeu na “explosão farsesca” da cena do tiroteio. Vanya tem
um ataque histérico, volta e dá um tiro no professor, que não está a mais de
dois metros de distância, e mesmo assim consegue a proeza de errar! Na
seqüência ainda comenta com Astrov que acabava de tentar assassinar Serebriakov
e ninguém chamou a polícia, ninguém tentou detê-lo, nada. É impossível não rir.
É, em tudo e por tudo, uma cena de farsa.
Ralph (Vanya) e Olivier (Astrov), 1945 |
Mais de
quinze anos se passaram até que Olivier retirasse Vanya da naftalina para seu último e mais exitoso contato com a
peça. Sua vida mudara radicalmente. Separara-se de Vivien Leigh depois de 25
anos e se casara com a atriz Joan Plowright, vinte e dois anos mais nova. Em
meados de 1961 foi abordado por Evershed Martin, diretor do Festival de Teatro
de Chichester, que o convidou não apenas para dirigir o festival e suas peças,
mas também para coordenar a construção do teatro que abrigaria o festival.
Flyer da temporada inaugural de Chichester, 1962 |
Olivier adorou o desafio, apaixonou-se pelo formato hexagonal projetado para o palco, que reservaria três lados para o público e escolheu duas peças clássicas — a comédia The Chances, de John Fletcher (circa 1617), e a tragédia The Broken Heart, de John Ford (circa 1625–32) — e Vanya para a temporada de estréia, em julho de 1962.
A
companhia arregimentada por Olivier era espetacular: além de sua esposa Joan
havia Lewis Casson — 87 anos, sessenta deles dedicados ao teatro
profissional — Sybil Thorndike — esposa de Casson, 80 anos, cinqüenta e cinco
anos de carreira e considerada a primeira dama do teatro britânico — Fay
Compton — 68 anos, cinqüenta de carreira e um currículo que incluía Ofélia para
os dois melhores Hamlets do século XX, John Barrymore e John Gielgud, além de
Emilia para o Othello cinematográfico
de Orson Welles — Athene Seyler, 72 anos, cinqüenta de carreira, Kathleen
Harrison, 70 anos, trinta e cinco de carreira; atores da geração de Olivier,
como Michael Redgrave, John Neville e Andre Morell, e mais Joan Greenwood —
casada com Morell — Rosemary Harris, Keith Michell, Peter Woodthorpe, Robert
Lang e uma pilha de figurantes.
The Chances estreou em 4 de julho de 1962 e The Broken Heart no dia 10. Foi um desastre.
A crítica chicoteou as duas montagens. Na primeira houve afluência razoável de
público. Na segunda os ingressos sobraram na bilheteria. Kenneth Tynan,
prestigiado e temido crítico do The
Observer, escreveu uma carta aberta a Olivier: “Alguma coisa claramente deu
errado, mas como? Quem colocou o hex
no hexágono (trocadilho com a palavra “hex”, que em inglês significa “feitiço”
ou “bruxaria”)? A culpa deve recair sobre a peça, sobre o teatro ou sobre você,
que é o diretor artístico?”
Publicação da época com os destaques de Chichester na capa: O Astrov de Olivier, e Rosemary Harris, Athene Seyler e Joan Plowright em cenas de "The Chances" |
Não
importa qual fosse a razão (provavelmente o fato de serem duas peças do século
XVII raramente montadas e portanto estranhas ao público), a temporada começou
com o pé esquerdo. Olivier se assustou. Pessoas com quem comentara a escolha de
Vanya para o repertório mostraram
resistência ao texto de Tchekhov e com o relativo fracasso dos dois espetáculos
iniciais, a previsão para a nova estréia, no dia 17, era, em suas próprias
palavras, “de extinção total”. Para piorar, dois dias antes de iniciada a
temporada em Chichester veio inadvertidamente a público a notícia de que
Olivier fora apontado para dirigir o National Theatre, companhia nacional de
teatro subvencionada pelo governo que vinha sendo discutida desde o fim do
século anterior e se transformava, finalmente, em realidade. O elenco juntado
por Olivier em Chichester seria, efetivamente, o primeiro elenco do National. O
sucesso deixou de ser uma opção; ou a temporada era um êxito sem precedentes,
ou, basicamente, sua carreira estava aniquilada.
Este é o
elenco de Vanya destacado para a
estréia do dia 17 de julho (ao lado, por fileira): Joan Greenwood (Yelena), Joan Plowright (Sonya),
Olivier (Astrov), Sybil Thorndike (Marina), Michael Redgrave (Vanya), André Morell (Alexandr), Lewis Casson (Telegin), Fay Compton (Mariya Vassilyevna) e Peter Woodthorpe (Yefin). Olivier conta em suas memórias que apesar dos dois revezes anteriores e toda a imprensa negativa que recebera, não estava nervoso na estréia. Confiava demais na excelência do elenco. “Quanto a mim”, disse, “Astrov era um dos meus papéis prediletos e o melhor era me divertir com ele”. Não se decepcionou. Vanya reverteu em 180 graus a maré de azar. Toda a aclamação esperada desde o início acabou canalizada para o texto de Tchekhov, contra o qual havia tanta resistência. O público superlotou o hexágono de Chichester pelos dois meses seguintes, até a primeira semana de setembro, quando terminaria a temporada. A Rainha Elizabeth assistiu Vanya e elogiou efusivamente toda a companhia. Kenneth Tynan se redimiu da patada que dera em Olivier dias antes e consignou, em sua coluna no Observer, que a montagem era ótima e contava com “duas performances superlativas”, referindo-se a Olivier e a Michael Redgrave.
Olivier (Astrov), Sybil Thorndike (Marina), Michael Redgrave (Vanya), André Morell (Alexandr), Lewis Casson (Telegin), Fay Compton (Mariya Vassilyevna) e Peter Woodthorpe (Yefin). Olivier conta em suas memórias que apesar dos dois revezes anteriores e toda a imprensa negativa que recebera, não estava nervoso na estréia. Confiava demais na excelência do elenco. “Quanto a mim”, disse, “Astrov era um dos meus papéis prediletos e o melhor era me divertir com ele”. Não se decepcionou. Vanya reverteu em 180 graus a maré de azar. Toda a aclamação esperada desde o início acabou canalizada para o texto de Tchekhov, contra o qual havia tanta resistência. O público superlotou o hexágono de Chichester pelos dois meses seguintes, até a primeira semana de setembro, quando terminaria a temporada. A Rainha Elizabeth assistiu Vanya e elogiou efusivamente toda a companhia. Kenneth Tynan se redimiu da patada que dera em Olivier dias antes e consignou, em sua coluna no Observer, que a montagem era ótima e contava com “duas performances superlativas”, referindo-se a Olivier e a Michael Redgrave.
O último Astrov de Olivier, 1962 |
Programação de Chichester, 1963 |
As peças
escolhidas por Olivier para a segunda temporada, em 1963, foram Saint Joan, de Bernard Shaw — veículo
exclusivo para sua esposa Joan —, direção de John Dexter; The Workhouse Donkey, original de John Arden com direção de Stuart
Burge, e Vanya, que Olivier fez
questão de reprisar, já que o espetáculo foi o talismã da temporada anterior.
Joan Greenwood e seu marido André Morell deixaram o elenco tempos antes, por
conta da gravidez de Joan. O papel de Alexandr foi para Max Adrian (que
descobri ser o ator que fez o detestável Dauphin no Henry V cinematográfico de Olivier) e Yelena passou a ser interpretada
pela lindíssima Rosemary Harris. O pequeno papel do criado Yefin foi desta vez
para Robert Lang. A peça de Shaw abriu a temporada, em 24 de junho, em seguida
veio Vanya, em 1º de julho, e a
terceira, no dia 8, foi o inédito de John Arden. O sucesso foi ainda maior. As
críticas transbordavam termos como “o maior Vanya
de todos os tempos”, “uma aula magna”, “o maior elenco já reunido” e assim por
diante. Não havia segredo. Em cartaz, no hexágono de Chichester, estava um
grupo insuperável de mestres da interpretação encenando a obra-prima de
Tchekhov. Era dificílimo encontrar alguma coisa para criticar.
Rosemary Harris e Peter O'Toole no Hamlet que inaugurou o National Theatre em 1963 |
Em outubro
o National Theatre fez seu espetáculo de estréia utilizando o Old Vic como sede
temporária, até que se construísse um teatro exclusivo para a companhia. O
texto escolhido foi Hamlet, com
direção de Olivier e Peter O’Toole no papel-título. O resto do elenco trazia
inúmeros atores da companhia fixa de Chichester. Rosemary Harris foi Ofélia, Max
Adrian foi Polônio, Derek Jacobi foi Laerte, Frank Finlay foi o coveiro e assim
por diante. A recepção desse espetáculo foi ambígua. O público compareceu em
peso, mas a satisfação não foi geral. Talvez O’Toole estivesse demasiadamente
engolfado no sucesso extraordinário de Lawrence
of Arabia, lançado há pouco, para se dedicar integralmente ao papel, que
conhecia bem e já encenara anos antes, no Bristol
Old Vic, onde ele e vários atores de sua geração começaram suas carreiras.
A temporada foi rápida e a fim de reverter a relativa decepção com esse Hamlet, Olivier decidiu trazer Vanya para uma temporada de despedida no
Old Vic, em novembro. A mudança de palco provou-se uma bola dentro. No dia 20
de novembro o The Guardian publicou
uma boa crítica do espetáculo, escrita por Philip Hope-Wallace:
O Vanya de Michael Redgrave |
O magnífico Uncle Vanya do Festival de
Chichester, um dos melhores exemplos de interpretação criativa a ser visto no
teatro inglês nestes últimos trinta anos, chegou acertadamente ao repertório do
National Theatre, na estrutura mais convencional de palco do Old Vic. Em sua
essência é a mesma produção, uma adaptação extraordinariamente linda, comovente
e delicada da comédia trágica de Tchekhov (...). A caracterização de Sir
Michael Redgrave para o papel-título está ainda mais rica e sutil. As decepções
do terceiro ato e a crescente sensação de inutilidade estiveram melhores do que
nunca nesta soberba performance; a bonomia cativante e palhaça resplandece de
forma mais simples e reveladora no segundo ato. Quanto ao Astrov de Sir
Laurence Olivier, o superlativo ideal me escapa. Não carece de descrição. A
cena em que promete parar de beber, com a vigilante Sonya no segundo ato, é
pura perfeição. Nem posso imaginar uma cantada melhor em Yelena, no terceiro
ato. Redgrave e Olivier, sempre melhores como “character actors” [interpretando
personagens diferentes, excêntricos, menos “naturalistas”] estão aqui no apogeu de seu talento. Nada melhor tem honrado nosso
palco, que eu possa me recordar.
A Yelena de Rosemary Harris não está
exatamente nesse nível, nem o professor velho e egoísta de Max Adrian, embora
ambos interpretem seus grandes momentos com efeito soberbo. No início do
terceiro ato há uma cena em que o Dr. Astrov exige que Vanya devolva a morfina
que roubou. E apela à Sonya que convença o tio. Quando Redgrave vira o rosto,
Joan Plowright coloca as mãos nos ombros dele: “É possível que eu seja ainda
mais infeliz que o senhor”... Foi de partir o coração, de tão bem feito, sem o
mais ínfimo tremor de auto-indulgência. E os esforços de consolação no fim
surgiram daquele momento como se não tivesse ocorrido a intervenção cômica da partida
dos hóspedes e o restabelecimento do silêncio rural, como ondas se espalhando
por uma piscina escura. Uma ocasião maravilhosa.
O dia de
publicação desse artigo guarda um detalhe maravilhoso pelo qual a humanidade
será eternamente grata: durante a temporada do espetáculo em Chichester, entre
julho e agosto, o espetáculo foi filmado sem público, com direção de Stuart
Burge, e o filme foi transmitido pela TV inglesa nesse mesmo dia 20 de novembro
de 1963, durante a temporada-relâmpago no Old Vic.
Graças a
essa filmagem a posteridade pode experimentar ainda que parcialmente o prazer
excelso de assistir o Vanya de Olivier e Redgrave. Farei alguns
comentários sobre o filme mas antes é preciso explicar: a versão a que tive
acesso, em DVD, é norte-americana, de uma empresa chamada “Kultur” e
supostamente traz a versão integral da BHE, British Home Entertainment.
Infelizmente, não é o que ocorre. Esta versão tem 14 minutos a menos do que a original, que tem duas horas (segundo o IMDB). Os cortes são simplesmente criminosos. Estão todos no primeiro ato, quando Marina serve o chá a Astrov, Vanya aparece e os outros chegam depois do passeio. O imbecil responsável por mutilar esta obra-prima cortou sem o menor critério, aleijando a descrição dos personagens e elementos fundamentais para a compreensão de muitos deles.
Astrov não fala do seu paciente que morreu em Malitskoye, Vanya não explica a origem humilde de Alexandr e o fato de seu primeiro casamento ter sido por conveniência, Astrov não responde a Vanya quando este diz que o amor pelas florestas é muito nobre mas ele continuará usando madeira em seu forno, e — o pior dos crimes — são cortadas as cenas mais significativas de Telegin, em que ele explica sua
fidelidade patológica à ex-mulher, e de Mariya Vassilyevna, na qual ela discute
com Vanya sobre as convicções serem inúteis se não forem acompanhadas de
atitudes.
Infelizmente, não é o que ocorre. Esta versão tem 14 minutos a menos do que a original, que tem duas horas (segundo o IMDB). Os cortes são simplesmente criminosos. Estão todos no primeiro ato, quando Marina serve o chá a Astrov, Vanya aparece e os outros chegam depois do passeio. O imbecil responsável por mutilar esta obra-prima cortou sem o menor critério, aleijando a descrição dos personagens e elementos fundamentais para a compreensão de muitos deles.
Lewis Casson (Telegin) |
Mestres
como Lewis Casson e Fay Compton tornam-se figuras quase decorativas
(não sei se a versão da BHE, lançada na Inglaterra, padece desses mesmos
equívocos). Além disso a produção original, feita para TV, parece ter passado
por um processo inútil de telecinagem para ser lançado como um filme (talvez com o propósito de participar de festivais, e coisas do tipo) e isso piorou a qualidade da
imagem. Mesmo com alterações tão cretinas e horrivelmente desnecessárias, é um verdadeiro presente poder ver o Uncle
Vanya encenado em Chichester.
Por fila: Laurence Olivier, Michael Redgrave, Fay Compton, Rosemary Harris, Joan Plowright, Max Adrian, Lewis Casson e Sybil Thorndike |
Fay Compton (Mariya Vassilyevna) |
Olivier (Astrov) |
Michael Redgrave: um Vanya comovente |
É o
primeiro Vanya pelo qual conseguimos sentir empatia. Tudo, no Vanya de
Redgrave, está no limiar do riso e da lágrima. Ele é engraçado e comovente. Quando
diz “bravo” ao discurso de Sonya, é hilário porque não o faz com jaça; está
zombando carinhosamente da sobrinha e brincando com o amigo médico. Quando
comenta ter conhecido Yelena dez anos antes e ri pensando em como seria
maravilhoso poder acalmá-la em uma noite de tempestade, ele emociona.
Quando
aperta e beija a mão de Yelena até que ela não aguenta e lhe diz que aquilo é really hateful, fazendo-o retrair as mãos em sinal de oração, com um olhar de
criança assustada, ele quebra o que poderia haver de impróprio ou desagradável
em sua atitude e torna-se imediatamente simpático ao público. Da mesma forma,
quando diz à Yelena why be miserable?, cheio de esperança e alegria, no
comentário sobre ela ter sangue de sereia, ele não irrita pela insistência, e
nem é “cruel”, como ela lhe diz. Pelo contrário. Ele está tentando libertá-la
de um destino que ela própria deplora, e é tão generoso que nem sequer se
menciona como personagem desse destino. Sua paixão é abnegada.
"Don't! This is really hateful!" |
Quando
tenta matar o professor e rouba a morfina ele é patético e mesmo assim, ao dizer a Astrov que não há nada pior do que a vergonha que está sentindo, não há como ter qualquer coisa por ele senão compaixão por sua dor. Mas ele ainda consegue emocionar mais uma vez e cria uma das cenas mais lindas do teatro: quando se despede
de Yelena, toma-lhe a mão e pede desculpas ao beijá-la, dizendo que é a última vez que se verão. Ela então lhe diz “goodbye, dear Ivan
Petrovich”, dando-lhe um beijo na cabeça. Ela se vira e vai embora mas a
surpresa é tanta com seu inusitado gesto de carinho que ele levanta a cabeça e
não consegue sopitar um pequeno sorriso de esperança. Maravilhoso. Olivier
tinha toda a razão quando disse, em suas memórias, que Redgrave foi “o mais
perfeito Vanya de todos os tempos”.
"Goodbye, dear Ivan Petrovich"... |
A cena
inicial em que Vanya discorre sobre a vida pregressa do professor e a farsa que
são os vinte e cinco anos de seu trabalho como crítico de arte é uma pérola de
inteligência, mas costuma ser pedregosa e por vezes se perde se o ator não
torná-la interessante. Michael Redgrave recita divinamente o monólogo, mas as
risadas de Olivier, que entrecortam suas falas, são a reação ideal, exata. Aquilo
que na maioria das montagens é longo e puramente descritivo, aqui é uma
deliciosa cena de comédia. É leve e divertido.
O mesmo pode ser dito,
vice-versa, da cena da embriaguez de Astrov. As falas do médico não são de um
bêbado denso e depressivo, e sim de um sujeito que canta, dança, brinca e fica
de bem com a vida quando está de pileque. A gargalhada asmática inserida por
Olivier ao comentar que quando está bêbado acredita ter “imensa utilidade para
a humanidade” é absolutamente genial! E Michael Redgrave está lá para ter a
reação exata tanto nesse momento — rindo desbragadamente — quanto no seguinte,
em que Astrov diz que em situações assim vê seus amigos como “insetos” — o
sorriso desaparece melancolicamente do rosto de Redgrave — e “micróbios” —
close no Telegin de Lewis Casson, que dorme com o violão na mão.
Olivier como Astrov: pra variar, perfeito |
"Immense service to humanity!!!".... |
"Tell me, Mikhail Lvovich"... |
Joan Plowright (Sonya): Brilhante |
"Ah! What a child you are!"... |
As duas protagonizam em Vanya uma das melhores cenas que já assisti entre duas atrizes: o momento em que Sonya faz seu pequeno questionário à Yelena. Perguntada se desejaria que seu marido fosse mais jovem, Rosemary Harris explode em uma gargalhada espetacular, tão hilária quanto inesperada. E responde rindo às casquinadas, impagável: Ah!, what a child you are! Well, of course I should! Well, ask some more questions, ask away!. Joan reage com a mais deliciosa cara de sarro e só multiplica a comicidade por dez quando vira o rosto e diz oh, dear, do I look silly. Ouro puro. A única ressalva que se pode fazer sobre a performance de Rosemary é que ela talvez tenha carregado um pouco demais no tom pastoso de sua voz em algumas cenas, com o fito de denotar tédio. Fora isso, é uma Yelena excelente. Seu monólogo antes do encontro com Astrov e a cena de sua sedução são impecáveis. Uma mistura certeira de romance e comédia. Rosemary tem uma apurada veia cômica e falas de Yelena que em geral seriam ilustrativas de sua superficialidade — como por exemplo sua explicação sobre o porquê de não curar seu tédio com atividades sociais, tais quais dar aulas e tratar da saúde dos camponeses: They are not interesting. It's only in sociological novels that people teach the peasants or doctor them — acabam tendo um colorido cômico que a tornam curiosamente mais simpática.
Olivier (Astrov) e Rosemary Harris (Yelena) |
Rosemary Harris: etérea e talentosa |
Sybil Thorndike, Lewis Casson e Fay Compton estão irretocáveis em seus pequenos papéis. Max Adrian já tinha sessenta anos, na época, e mesmo assim está com peruca, barba e bigode postiços, e até sobrancelhas brancas. Como se não bastasse ainda deixa os olhos artificialmente semi-cerrados, a fim de reforçar uma imagem de velhice, ou de fraqueza. Não funcionou. E não era necessário. Ele era um ótimo ator e sendo careca, a barba e o bigode teriam sido mais do que suficientes. Do jeito que ficou, é uma caracterização exagerada e falsa. Fora esse detalhe mínimo, ele está muito bem.
Max Adrian |
A grande dama do teatro inglês, Sybil Thorndike |
"It's warm and snug... I don't want to go"... |
Em suma, nas palavras do próprio Astrov, “no fim das contas, provavelmente é tudo excentricidade” (Все это, вероятно, чудачество, в конце концов).
O LP duplo do espetáculo, lançado pela Philips |
Atualização em 19/03/2020 — Acabo de descobrir, com a maior alegria, que durante a temporada de Vanya em 1963, a British Home Entertainment se associou ao Festival de Chichester e, através da Philips, lançou um LP duplo com a gravação do espetáculo em sua integralidade, contendo um caderno de fotos e textos sobre a peça. A duração é de uma hora e cinqüenta e um minutos e estão lá, em som de alta qualidade, todas as cenas cortadas do filme. A posteridade agradece de joelhos, e quem quiser ouvir essa maravilha pode acessá-la AQUI.
Andrei
Konchalovsky tinha pouco mais de 20 anos quando começou a trabalhar como
roteirista de filmes do já afamado Andrei Tarkovsky. Em 1965 estreou na direção
com O primeiro professor (Первый учитель), que teve boa recepção de crítica
e foi indicado a dois prêmios no Festival de Veneza. Em 1966 veio A história
de Asya Klyachina, que amou, mas não se casou (История Аси Клячиной, которая
любила, да не вышла замуж), sobre uma camponesa manca que estava grávida de um
inútil que procrastinava o casamento dos dois. O filme mostrava a vida de
fazendeiros e camponeses pobres da União Soviética por uma lente nada
lisonjeira, ou seja, tão próxima à realidade quanto possível, o que acabou perturbando Vladimir Semichastny, diretor da KGB. É sempre bom lembrar que a empresa produtora de filmes, na União Sovética, a Mosfilm, era estatal e seu símbolo era um casal em pose heróica, ambos com um braço levantado, ela empunhando a foice e ele o martelo. O filme
foi rapidamente retirado de cartaz e só voltaria a ser exibido se Konchalovsky
concordasse em fazer inúmeros cortes. O diretor se negou e o filme ficou na
prateleira durante duas décadas.
Tarkovsky e Konchalovsky |
passou os dois anos seguintes trabalhando apenas como roteirista, recuperando-se do revés sofrido junto ao governo. Foi quando o Departamento Estatal de Cinema (Goskino) tentou compensá-lo oferecendo-lhe a possibilidade de levar à telona o inofensivo clássico de Turgenev, Дворянское гнездо, Ninho de Nobres. Ele aceitou e o filme foi lançado em 1969. Sem ser nenhuma obra-prima, a adaptação abriu a Konchalovsky um novo viés criativo que ele poderia seguir sem incomodar o governo, naqueles tempos espinhosos de censura. Foi o ator Innokenti Smoktunovsky, em um encontro acidental, quem lhe sugeriu Vanya para seu próximo projeto. Consultado, o Goskino aceitou de bom grado, pedindo-lhe apenas que “não estragasse a peça”. Konchalovsky começou a escalar o elenco.
Innokenti Smoktunovsky |
O
papel-título evidentemente foi para Smoktunovsky; o renomado ator e diretor
Sergey Bondarchuck, que dirigira o épico Guerra e Paz em quatro partes, entre
1965 e 1967, e há pouco concluíra a direção de Waterloo, com Rod Steiger e
Christopher Plummer, aceitou interpretar Astrov; o pequeno papel de Mariya
Vassilyevna foi para Irina Anisimova-Wulf. Sua presença é altamente simbólica,
não só porque é seu único filme como atriz, mas porque ela entrou no MXAT em
1925 e um de seus primeiros professores foi ninguém menos do que o agora
lendário Konstantin Stanislavsky, o que a tornava um elo direto entre o filme e
a montagem pioneira de Dyadya Vanya; várias atrizes
fizeram testes para interpretar Yelena mas o papel foi para a lindíssima Irina
Miroshnichenko, atriz do MXAT com carreira ascendente no cinema (e uma pequena participação, aliás, em Andrey Rublev); Konchalovsky
aproveitou Irina Kupchenko, que acabava de interpretar Elizaveta em Ninho de
Nobres e a escalou para o papel de Sonya; o veterano Vladimir Zeldin recebeu o
papel de Alexandr; e os relativamente desconhecidos Nikolai Pastukhov e
Yekaterina Mazurova ficaram, respectivamente, com os papéis de Telegin e
Marina.
Por fila: Sergey Bondarchuck, Innokenti Smoktunovsky, Irina Anisimova-Wulf, Irina Miroshnichenko, Irina Kupchenko, Vladimir Zeldin, Nikolai Pastukhov e Yekaterina Mazurova |
No fim cheguei à conclusão de que a transição de cores não tinha, efetivamente, nada a ver, e mesmo que o tom sépia de algumas cenas seja plasticamente bonito, é um ponto fora da curva. Qual não foi minha surpresa quando trombei com um comentário de Konchalovsky sobre o filme, no qual ele explica o que aconteceu. O esclarecimento deve ter arrasado muita gente: “O filme foi feito com dois tipos de película, uma em cores, da Kodak, e uma em preto e branco. A razão para isso é que simplesmente não tínhamos suficiente película colorida para o filme todo. E quando tentamos usar a película soviética Sovkolor, ela ficou com uma estranha tonalidade verde! É engraçado porque mais tarde houve críticos que encontraram uma lógica artística para a transição das imagens coloridas para o preto e branco!”
Miroshnichenko e Konchalovsky (Foto) |
Sergey Bondarchuck (Astrov) |
Ele estava convencido de que Astrov deveria ter uma aparência aristocrática; mandou até fazer um terno caríssimo na Itália. Mas na visão de Konchalovsky, Astrov era um homem que usava um paletó amarrotado. Quando terminaram de filmar, Bondarchuk foi ao Comitê Central [órgão interno de censura do Goskino] e disse-lhes que Konchalovsky tinha feito um filme anti-russo e anti-Tchekhov. Muitos anos depois, em um festival em Sochi, Konchalovky e Bondarchuk lembraram aquela época com um sorriso e Bondarchuk admitiu: "Eu fui um idiota. O filme realmente ficou muito bom".
Irina Anisimova é menos empolada do que a velha metida a aristocrática de Fay Compton. Sua Mariya Vassilyevna é cínica e bem-humorada, que lê seus panfletos e não dá a mínima para sua família desmoronando. Irina Kupchenko é bonita demais para convencer como a jovem sem graça que contempla unicamente sua solteirice, mas é uma ótima atriz. A felicidade brejeira e sincera com que reage ao monólogo de Astrov sobre as árvores é uma delícia, como são deliciosas todas as suas cenas.
A maravilhosa Irina Miroshnichenko (Yelena) |
Irina
Miroshnichenko é um capítulo à parte. É uma estrela de cinema de quilate
superior. Daquelas que não precisam mover um único músculo para conquistar. Uma mistura apaixonante de Marilyn e Monica Vitti. Quando entra em cena, uma sílfide perfeita, refulgente, emanando e
espalhando beleza por aquela cozinha tosca, compreendo com absoluta exatidão o
que Vanya sente quando a vê: “E que mulher mais linda! Que linda! Em minha
vida eu nunca vi uma mulher tão linda” (А как она хороша! Как хороша! Во
всю свою жизнь не видел женщины красивее). E no entanto é muito mais do que
isso. Tive o prazer de vê-la em outros papéis de Tchekhov, como a Masha tanto
de A Gaivota (1974) quanto de Três Irmãs (1984)
e minha impressão foi a melhor possível. É uma atriz talentosíssima, com sólida
formação teatral e sua Yelena é a mais sensível de todas que assisti. É
incrível como ela consegue transmitir facetas diversas da personalidade de
Yelena com seu olhar: a tristeza de sua condição, a decepção com o casamento, a fragilidade de sua psique,
a simpatia indiferente, a vulnerabilidade infantil, a carência latente, a
sensualidade reprimida e tantas outras. Mais do que em qualquer outro caso,
lamenta-se dolorosamente que Konchalovsky tenha cortado tanto o papel de
Yelena. Que verdadeiro deleite não seria apreciar Irina, com 28 anos, vertendo
as pérolas da personagem que ela encarnou tão bem.
Irina Miroshnichenko (Yelena): mil sentimentos com um único olhar |
Innokenti Smoktunovsky (Vanya) |
Em meio às conversas em tom de confidência, ele é o único personagem, no filme, que se permite explosões ocasionais de temperamento; é melancólico e depressivo, mas traz uma qualidade nova, que raramente se vê nas montagens da peça: a ansiedade. Seu Voynitsky é uma panela de pressão. Suas reações na cena do chá mostram que qualquer palavra atravessada provocará uma reação nem sempre comedida. Mostram que a explosão do terceiro ato é uma questão de tempo. À simples pergunta de Astrov sobre o professor, ele não responde com desprezo irônico, mas com indignação. Quando Telegin discorda de seu ponto de vista sobre a fidelidade de Yelena leva um safanão verbal (Заткни фонтан, Вафля!, algo como “feche essa matraca, Waffles!”).
"О, да!..." |
Ela também não tem uma postura ostensiva de desprezo e em vários momentos assume claramente uma posição de disponibilidade; não partirá dela nenhuma iniciativa, mas se ele decidir roubá-la do professor e tirá-la dali, o assunto é outro. Quando ele põe a mão em seu ombro ela reage menos com enfado do que com receio de que sejam vistos; quando pergunta a Vanya se ele está bêbado não está chamando-o às falas ou ralhando com ele; antes, está num misto de medo e excitação que quase termina em uma cena de sedução. Não é o que ocorre, mas não caberia aqui a frase de Vanya (cortada do filme), de que sabe ser nula a possibilidade de seu amor por ela ser correspondido (Я знаю, шансы мои на взаимность ничтожны, равны нулю).
Yelena e Vanya: um flerte ligeiramente agressivo e ligeiramente correspondido |
Vanya (Smoktunovsky) e Yelena (Miroshnichenko) |
Mariya Vassilyevna (Irina Wulf) e Vanya (Smoktunovsky) |
Vladimir Zeldin |
Bondarchuk (Astrov) e Smoktunovsky (Vanya) |
Irina Kupchenko: uma réstia de esperança |
Sonya (Irina Kupchenko): uma pintura |
Yelena (Miroshnichenko) e Sonya (Kupchenko) |
A Yelena de Irina Miroshnichenko |
O terceiro
ato é sensacional e traz uma cena mais memorável do que a outra. Detecto uma
linha mestra estipulada por Konchalovsky mas acredito que os atores têm pelo
menos 90% do mérito na realização. Em alguns lances é possível sentir a
perfeição alcançada por Olivier e seu grupo de notáveis. Logo após tocar piano,
Yelena levanta-se e apoia-se em uma porta que começa a fazer com ela um
movimento de pêndulo. A expressão de Miroshnichenko vai do tédio a um píncaro
de felicidade infantil, como se tivesse levantado vôo. Um primor. Infelizmente
a tesoura de Konchalovsky foi inclemente e a interação dos três foi toda
cortada. Não há o desabafo de Yelena sobre estar morrendo de tédio, não há o
comentário de Sonya sobre Yelena poder dar aula ou trabalhar com eles, Sonya
não lhe diz que ela deve ser uma bruxa, e etc. Quando Vanya sai para buscar as
rosas, Sonya insere em seu diálogo com Yelena a fala do segundo ato, na qual revela
a conversa que ouviu depois da missa, sobre ser “sem graça”. O monólogo de
Yelena sobre sua empolgação com Astrov é cortado (um verdadeiro crime) e resta
um último quadro com Irina Kupchenko: depois de dizer que é melhor não saber a
verdade e ter esperança, ela olha a câmera de frente e as luzes se apagam,
restando apenas a iluminação do lado esquerdo de seu rosto, e de seus olhos
translúcidos."Solidão" é a talvez a primeira coisa que vem à cabeça, mas a imagem também pode significar vazio, tristeza, traição e o que mais o espectador quiser.
permanente desgosto, ostentado por Bondarchuk. A química entre os dois é estupenda, e no total desconforto com o assunto, ela começa a brincar com uma faca que estava sobre a mesa. Segundo Miroshnichenko:
Esta cena ficou em minha memória (...) por seu
curso completo, sua construção. Foi feita de nuances, meios-tons, olhares
relanceados, uma faca com cabo de osso que de repente apareceu lá. (...) Foi colocada na mesa e a princípio eu nem
sabia o que era aquilo. Acontece que livros antigos eram publicados com as
páginas sem cortes e em cada casa havia uma faca de família para cortá-las. E
agora estou brincando com essa faca. Nervosamente, os dedos expressam esse
nervosismo, essa excitação. Tanto o diretor quanto meu colega de cena gostaram
de como eu construí esse episódio: Yelena Andreyevna está ansiosamente excitada
na cena da conversa com Astrov, mas isso se expressa através de gestos, e não
outra coisa.
Um sorriso capaz de acalmar até um touro selvagem, e uma faca no meio do caminho |
Enquanto
isso ocorre, Vanya anda pela casa à procura de Yelena, com o buquê de rosas na
mão. Em uma das salas depara com Sonya, em momento engraçadíssimo, porque ela está
em meio a seu próprio ataque de ansiedade, aguardando a resposta de Yelena, com
o olhar distante, esgazeado, e embora Vanya esteja a seu lado, olhando-a, ela
simplesmente o ignora. No clímax da cena, que do nada adquire cores, Yelena e
Astrov estão se agarrando e continuam se agarrando porque nem mesmo o ranger da
porta os fez perceber que alguém entrara. Ela acaba encostando em Vanya e
inicia-se mais uma jóia produzida por esse elenco: a câmera focaliza os três
em plano médio-fechado. Ela, no meio dos dois, diz o famoso “é terrível” (Это
ужасно), baixa a cabeça e levanta-a logo em seguida para arrumar o cabelo.
Refeita e com absoluta seriedade, enquanto tenta recolocar a agulha no coque,
ela pede a Vanya que utilize todo seu poder para que ela e seu marido deixem a
casa naquele mesmo dia. Pergunta duas vezes: “Você escutou? Você escutou?” (Слышите?
Слышите?) Vanya responde, ainda chocado e desarvorado, que sim. E o toque de gênio:
quando diz “hoje” (Сегодня же), ela abre um sorriso inoportuno, absurdo,
insano, e sai da sala aos trancos e barrancos, ainda tentando arrumar o cabelo. Genial.
Por uma fração de segundo, prazer |
Astrov beija
Yelena Andreyevna [é ligeira confusão de Irina. Não há, efetivamente, um beijo
nesta cena, a não ser nas mãos de Yelena. O beijo só ocorre na despedida dos dois, no fim do quarto ato], Tio
Vanya entra e os encontra juntos. Fizemos algumas tomadas. No começo fiquei
horrorizada de que o Tio Vanya de repente se torna testemunha desta situação.
Esta era a linha de raciocínio: “Que pesadelo! Como me meti nesta situação?
Como posso sair dela? Como é constrangedor! Como é vergonhoso! Não quero mais
nada deste lugar! Quero sair daqui!” E eis que em uma das últimas tomadas, eu
já estava mais ou menos relaxada, Tio Vanya entra novamente, os mesmos
pensamentos passam pela minha cabeça e de repente, no último instante, eu dei
uma risadinha. Do paradoxo da situação. Tendo como pano de fundo a experiência
de um pesadelo, por tudo que estava acontecendo, tudo subitamente tornou-se
ridículo. Durou só um momento. Não disse nada, apenas ri rapidamente e caí
fora. Bondarchuk foi o primeiro comentar. Ele disse: “É interessante. E é
estranho. Você riu tão nervosamente, foi uma reação inesperada”.
"Me arrependo de ter iniciado esta conversa"... |
"Você escreve sobre arte, mas você não entende nada sobre arte!"... |
"Shopenhauer, Dostoievsky"... |
"Já me sinto culpada, pronta para cair de joelhos em frente à Sonya, pedir desculpas, chorar"... |
Lançado na União Soviética em 1970, ele ganhou alguns prêmios internacionais no ano seguinte, alguns nos Estados Unidos, o Jussi, na Finlândia e a Concha de Prata no festival de San Sebastian, na Espanha. Como não pôde sair da URSS para acompanhar o filme em competições, Konchalovsky ficou sabendo praticamente sem querer que vencera o segundo lugar do festival espanhol:
Uma noite de agosto, em 1971, o diretor e sua esposa estavam caminhando pela rua Novoslobodskaya, onde alugavam um apartamento e passaram por um painel que exibia um jornal. Konchalovsky estremeceu de prazer - no canto, uma pequena nota dizia: "Tio Vanya recebe a Concha de Prata".
**********
Oleg Yefremov |
Em determinado momento da temporada, parte do elenco foi substituída; no lugar de Dmitry Brusnikin entrou o famoso ator Oleg Borisov, para interpretar Astrov; Evgeny Evstigneev começou a interpretar Alexandr, e a grande surpresa: para alternar com Evstigneev o papel do professor, Yefremov convidou Innokenti Smoktunovsky. Coroando a nova equipe, Vera Sotnikova foi substituída por ninguém menos do que a companheira de Smoktunovsky no velho Hamlet de Grigory Kozintzev, a lindíssima Anastasiya Vertinskaya, que passou a interpretar o papel de Yelena.
Reencontro, 21 anos depois: acima, o Hamlet de Smoktunovsky para a Ofélia de Anastasiya Vertinskaya em 1964 e abaixo, Alexandr e Yelena, no Vanya de Yefremov, 1985 |
Smoktunovsky (Alexandr), 1985 |
O reencontro com Vanya, dezoito anos depois |
Cheguei ao ensaio já sendo — desculpem — uma
atriz adulta, tendo um rol de personagens sobre os ombros. Innokenti Mikhailovich também veio a este ensaio. E imediatamente se deu conta de que eu
tinha mudado. Pelos nove dias seguintes tivemos “um filme muito diferente”, que
nada tem a ver com o filme de Konchalovsky. E tive com Kesha [apelido do nome "Innokenti"] uma relação
completamente diferente, havia outros fluídos entre nós. Ele me chamava para
dizer algo, para me ensinar. Ele nunca fez isso no filme! Lá ele estava
concentrado só nele mesmo. E eu estava concentrada em Konchalovsky. E agora,
sob a direção de Yefremov, ele me puxava para o lado e dizia: “Você entende,
aqui você tem que transmitir mais dignidade, e aqui mais desapego”. Ele pôde
até me mostrar como imaginava que Yelena Andreyevna deveria ser, nesta peça:
régia, inatingível.
Irina Miroshnichenko: a beleza e o talento de sempre |
O que há
de mais marcante neste, que seria um “Vanya
da maturidade” para alguns dos atores, é que pela primeira vez estamos
vendo Smoktunovsky e Miroshnichenko interpretando seus personagens da maneira
que foram originalmente escritos, sem a necessidade de virtuose
cinematográfica. São tantos os monólogos e cenas cortados por Konchalovsky,
que a sensação é a de estarmos assistindo algo novo. É raro compararmos —
sobretudo no caso de Miroshnichenko — o filme à montagem teatral porque a
referência ou tinha sido podada ou não existe. Nunca tínhamos visto a atriz em
cenas seminais de Yelena, e é um prazer vê-la descer, finalmente, ao fundo da tragicomédia que é a vida da personagem. O mesmo ocorre com Smoktunovsky. Alguns monólogos, como o da cena
inicial, ou quando Yelena o rejeita, no segundo ato, impressionam pelo tamanho
e não porque sejam excessivamente longos, mas porque acabamos esquecendo que
eles não são tão curtos como faz crer o filme. Miroshnichenko destaca o fim do terceiro ato, que ela faz aos gritos, caída em um sofá, em contraste aberto ao filme:
A produção teatral tem seu próprio algoritmo. Ali, no terceiro ato, é preciso manter um certo ritmo, você precisa de uma explosão, uma decolagem, uma outra velocidade. E, afinal de contas, temos que entender que assim é Yefremov. Ele sempre gostou de "explosões" no terceiro ato de Tchekhov. Ele sempre alinhava a textura da peça para que naquele momento tudo soasse muito intenso, de forma que o público ficasse chocado de ter lágrimas nos olhos. (...) Por exemplo, o cenógrafo [Valery] Levental inventou um lindo sofá circular onde se podia sentar em lados diferentes, e nele eu caía e gritava, histérica: "Me leve embora, me leve embora, não posso mais ficar aqui!" [Увезите меня отсюда! Увезите, убейте, но... я не могу здесь оставаться, не могу!] Tal explosão emocional não caberia no filme. Na tela, Yelena Andreyevna é suave e contida. (...) É um drama interior profundo, sem exaltação, sem histeria. Assim como me pediu Konchalovsky. Portanto teatro e cinema são gêneros diferentes, estilos diferentes, maneiras diferentes de interpretar. Diria até, são formas diferentes de arte.
A produção teatral tem seu próprio algoritmo. Ali, no terceiro ato, é preciso manter um certo ritmo, você precisa de uma explosão, uma decolagem, uma outra velocidade. E, afinal de contas, temos que entender que assim é Yefremov. Ele sempre gostou de "explosões" no terceiro ato de Tchekhov. Ele sempre alinhava a textura da peça para que naquele momento tudo soasse muito intenso, de forma que o público ficasse chocado de ter lágrimas nos olhos. (...) Por exemplo, o cenógrafo [Valery] Levental inventou um lindo sofá circular onde se podia sentar em lados diferentes, e nele eu caía e gritava, histérica: "Me leve embora, me leve embora, não posso mais ficar aqui!" [Увезите меня отсюда! Увезите, убейте, но... я не могу здесь оставаться, не могу!] Tal explosão emocional não caberia no filme. Na tela, Yelena Andreyevna é suave e contida. (...) É um drama interior profundo, sem exaltação, sem histeria. Assim como me pediu Konchalovsky. Portanto teatro e cinema são gêneros diferentes, estilos diferentes, maneiras diferentes de interpretar. Diria até, são formas diferentes de arte.
Yanina Lisovskaya (Sonya), Sofya Pilyavskaya (Mariya Vassilyevna) e Vyacheslav Nevinny (Telegin), 1988 |
Um Vanya cansado |
Um Astrov velho demais |
Uma Yelena maternal |
Quase
todos já se foram, dos dois Vanyas de
Smoktunovsky. Yanina Lisovskaya tem 56 anos e é atriz de TV e cinema na
Alemanha. Irina Kupchenko está com 69 anos e trabalha regularmente no cinema russo.
Irina Miroshnichenko tem 75 anos e não faz filmes há mais de uma década mas dá
entrevistas, participa de eventos e segue sendo uma das figuras mais queridas e
admiradas do meio artístico, em seu país. Andrei Konchalovsky está com 79 anos e continua
trabalhando como diretor e roteirista. Innokenti Smoktunovsky morreu de um
ataque cardíaco em 1994, aos 69 anos. Miroshnichenko declarou recentemente que
a vida lhe deu “a felicidade de trabalhar com este artista único”.
Bibliografia:
Irina Miroshnichenko participa de exposição em homenagem aos 90 anos de Innokenti Smoktunovsky, em março de 2015 |
Bibliografia:
Agradecimento à Larissa Maragno, Cris Ferraz Prade e Tom Anderson
- OLIVIER, Laurence. Confissões de um Ator. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1985.
- STANISLAVSKY, Konstantin. Minha vida na Arte. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1989.
- http://apchekhov.ru/books/item/f00/s00/z0000027/st011.shtml
- http://archives.chicagotribune.com/1946/06/16/page/153/article/on-the-aisle#text
- https://books.google.com.br/books?id=FigKDAAAQBAJ
- https://books.google.com.br/books?id=ph4qwhBMg8wC
- http://chehov.niv.ru/chehov/vospominaniya/nemirovich-danchenko.htm
- http://chehov.niv.ru/chehov/text/dyadya-vanya-primechaniya.htm
- https://emilyjanicemiller.files.wordpress.com/2015/01/uncle-vanya-production-history.pdf
- http://franchottone.blogspot.com.br/2015/07/uncle-vanya-1957.html
- http://ilibrary.ru/text/972/index.html
- http://ilibrary.ru/text/1202/p.4/index.html
- http://konchalovsky.ru/works/films/Oncle_Vania/
- http://konchalovsky.ru/works/films/Asya/
- http://konchalovsky.ru/works/films/Dvorianskoe_gnezdo/
- http://miroshnichenko.livejournal.com/31782.html
- http://miroshnichenko.livejournal.com/45409.html
- http://miroshnichenko.livejournal.com/58479.html
- http://miroshnichenko.livejournal.com/77887.html
- http://miroshnichenko.livejournal.com/120729.html
- http://miroshnichenko.livejournal.com/120892.html
- http://passiton.cft.org.uk/archive/programme-uncle-vanya-1962/
- http://primetour.ua/en/company/articles/teatr-im--ivana-franka.html
- http://rvb.ru/18vek/dmitriev/01text/02satirpoems/014.htm
- http://xn--80aizddian.org/persons.php?id=12352
- http://www.mxat.ru/history/performance/unclevanya85/
- http://www.pushkins-poems.com/VanyaAct1.html
- http://www.smotr.ru/mhat/mhat_prog_van.htm
- http://www.tele.ru/stars/star-story/znakovye-roli-iriny-miroshnichenko/
- https://www.theguardian.com/theguardian/2008/nov/20/3
- https://www.theguardian.com/stage/theatreblog/2011/jul/29/theatre-critics-review-giving-offence
- http://www.thelatinlibrary.com/horace/carm1.shtml
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Ver também:
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