1 - Embora a eleição de Trump em 2016 se assemelhe, de certa forma, à eleição de Bolso no Brasil, dois anos depois - no sentido de que dois populistas inteiramente incapazes foram eleitos - não há maior paralelismo. Bolso foi aquela remédio tomado às pressas para matar o vírus do PT. E no fim substituiu-se a corrupção desenfreada de um pela anarquia psicótica do outro. Tomou-se o remédio primeiro, leu-se a bula depois.
Haveria um paralelo mais fiel na eleição de 2002, que levou Lula ao poder; Fernando Henrique estabilizou o moeda e o Brasil viveu oito anos de relativa calmaria financeira. Quando chegou a hora de sua sucessão, porém, Mário Covas fez a maldade de morrer e deixou o destino do PSDB nas mãos de José Serra, um candidato de competência comprovada mas de pouquíssimo apelo popular. Conclusão: Lula ganhou no segundo turno.
Na mesma medida, Obama foi o presidente que tirou os Estados Unidos de sua pior crise desde o crash de Wall Street em 1929, mas quando seu segundo mandato terminou, o Partido Democrata meteu os pés pelas mãos e endossou a candidatura de Hillary Clinton. Poderia (e deveria) ter cerrado fileiras em torno de Elizabeth Warren - uma espécie de versão friendly, confiável e ligeiramente mais à esquerda de Hillary - mas ela própria sabotou sua candidatura e resolveu não concorrer. Sobrava Bernie Sanders - aquele tio velho, liberal e progressista, sempre mal-humorado e, por isso mesmo, divertidíssimo sem querer - mas denominar-se um "democrata socialista" nos Estados Unidos é o mesmo que jurar lealdade a Lenin e Stalin. Bernie foi até o fim e fez uma bela campanha dentro do partido, mas acabou defenestrado. A escolhida foi Hillary. Os eleitores de Bernie - que incluíam quase 100% da classe artística e intelectual - jamais a perdoaram. Muitos estão naquele percentual que seria capaz de votar em branco para não ter que votar na candidata.
Não poderia haver pessoa mais preparada para o cargo do que a esposa do ex-presidente Bill Clinton. O fato de ser mulher também era altamente representativo, somando-se ao ineditismo de suceder o primeiro presidente negro. Mas Hillary era uma candidata difícil de ser vendida ao establishment. Experiente, competente e pessoalmente desagradável, ela pisava forte no calo do patriarcado norte-americano e, para usar um termo conhecido por lá, "não excitava a base" de seu partido. Trazia também a nódoa de, como senadora, ter votado a favor da guerra do Iraque, fato do qual se arrependeu publicamente, mas que é sempre lembrado como sinal de sua fraqueza (Biden, por sinal, apoiou a mesma guerra e não foi tão cobrado por isso quanto Hillary. Dois pesos e duas medidas? Certamente).
Não obstante tudo isso, ela venceu a eleição pelo voto popular com três milhões de votos a mais do que seu oponente, mas no Colégio Eleitoral levou uma surra pior do que a que Trump está levando hoje. Dessa forma, podemos afirmar que tanto 2002 no Brasil quanto 2016 nos Estados Unidos não foram exatamente eleições de protesto contra o governo que saía, mas derrotas que talvez devam ser debitadas a escolhas partidárias equivocadas. No Brasil, pela morte do candidato ideal; nos Estados Unidos, porque a candidata ideal não quis concorrer.
Hillary, Elizabeth Warren e Bernie |
O 2020 norte-americano é o 2006 brasileiro. Só que enquanto os brasileiros perdoavam Lula e derrotavam Geraldo - mesmo que o petista estivesse chamuscadíssimo pelos escândalos de Valdomiro Diniz e Carlinhos Cachoeira, além do recém-denunciado mensalão - os americanos tiveram mais senso e chutaram Trump para longe.
2 - Houve dezenas de postulantes à vaga de candidato do Partido Democrata para a eleição presidencial de 2020. Alguns desses jovens eram interessantíssimos e representavam várias minorias, como o empresário descendente de taiwaneses, Andrew Yang, o ex-prefeito de South Bend, Indiana, Pete Butigieg, assumidamente homossexual, a senadora por Massachusetts, Amy Klobuchar e a senadora pela California, Kamala Harris (que conseguiu abocanhar a vice-presidência, na chapa de Biden). Todos seriam boas opções, mas os democratas tiveram medo de apresentar um nome relativamente desconhecido numa eleição tão fundamental, e desde o primeiro momento apostaram no favoritismo dos experientíssimos septuagenários Elizabeth Warren e Bernie Sanders, e agora o ex-vice de Obama, Joe Biden.
Só que 2020 não é 2016 e a percepção do público mudou drasticamente de direção. Não havia mais idéias em jogo, e sim a necessidade premente de tirar Trump da presidência. No fim das contas, o alaranjado empresário não cumpriu uma única de suas promessas, mesmo as mais cretinas, como construir um muro separando o país do México. Só fez trombetear uma estabilidade financeira que herdou de seu antecessor (exatamente a mesma coisa que Lula fez em seu primeiro governo). No mais, Trump tentou acabar com o Obama Care e foi obstado pelos próprios republicanos no senado. Notabilizou-se apenas pelas múltiplas investigações que sofreu por intromissão externa nas eleições que lhe deram sua questionabilíssima vitória; por nunca ter revelado sua declaração do imposto de renda, por ter sofrido um impeachment na Câmara, por ser um homem ignorante e sem qualquer refinamento e por um sem-número de declarações idiotas e ofensivas pelo twitter. E, obviamente, é indescritível sua estupidez na forma como lidou com a pandemia mais séria que enfrentamos desde a gripe espanhola. Bernie e Warren perderam o bonde da história em 2016 e quem se tornou a opção mais viável foi o folclórico vice de Obama, Joe Biden.
Político de carreira há 50 anos, Biden enfrentou tragédias pessoais (a morte da primeira esposa e da filha em um acidente automobilístico, e a morte de um filho, recentemente, por cãncer no cérebro) e tentou se candidatar à presidência duas vezes, anteriormente (1988 e 2008), mas não conseguindo qualquer respaldo dentro do partido, simplesmente retirou sua candidatura antes da convenção.
Mas por quê Biden e não Bernie ou Warren? Os três seniors tem basicamente os mesmos pontos de vista e são, cada um à sua maneira, o "anti-Trump". Em termos sociais, aliás, Bernie e Warren são bem mais progressistas e já advogavam - sobretudo Bernie - direitos com os quais Biden só passaria a concordar depois de um longo e lento processo de evolução que culminou com seu apoio ao casamento gay, em 2012, antes mesmo do próprio Obama embarcar nessa onda. Há duas razões: a primeira é de que o Partido Democrata quer cooptar o eleitor de Trump que está decepcionado com seu governo, e não fortalecer a ideologia de quem já vota com os democratas. Nesse sentido, o homem branco e conservador que se arrependeu de votar em Trump se sentirá muito mais confortável votando em alguém inteligente, embora simples e tosco, que evoluiu publicamente em seu ponto de vista, do que em candidatos que possuem uma agenda historicamente engajada e um indisfarçável verniz professoral, como é o caso de Bernie e Warren. Biden é visto como povo. Suas muitas gafes ao longo dos anos não são máculas em sua vida, tanto quanto momentos que fizeram o povo rir e se identificar com ele.
Com John McCain
Biden será a volta à normalidade democrática. Será a tentativa de consertar, no campo social e do Meio Ambiente, aquilo que Obama cimentou durante oito anos e Trump destruiu em quatro. Se acontecerá como Biden planeja e deseja, não sabemos. Ele tem hoje 77 anos. Na próxima campanha estará com 81. Tem uma boa vice, mas à esta altura, ninguém pode prever. O que fica patente é que os norte-americanos deram um exemplo ao mundo recusando (pela segunda vez) o narcisista laranja, racista e preconceituoso.
3 - Me perguntaram se o trumpismo vai acabar. Pergunto de volta: o lulopetismo acabou? O nazismo acabou? Enquanto houver pessoas que professam sua idolatria por um político - incensando-o e adorando-o por tudo, inclusive seus defeitos - e não por idéias, o movimento não acaba. Trump nos Estados Unidos e Lula no Brasil, transformaram o erro em hábito e a contravenção em acerto. Criaram precedentes e justificativas para os piores procedimentos que um político poderia adotar. Manipularam o povo mais simples e desinformado e se mancomunaram com os mais deletérios elementos da política e da imprensa. Valeram-se disso para criar o conceito de fake news. E depois, evidentemente, se disseram vítimas disso. Assim como chamaram Deus e o mundo de corruptos, e uma vez na presidência, não houve crime no qual não incidissem. E gritassem, ultrajados, cada vez que eram pegos pela mesma justiça que tanto desejavam para todos, menos para eles e seus comparsas. É o proverbial trombadinha que bate uma carteira e sai gritando "pega ladrão".
No Brasil, já tivemos um desdobramento monstruoso do radicalismo lulopetista: foi o surgimento de seu antípoda siamês, Bolsonaro. Nos Estados Unidos o ciclo dos deplorables foi interrompido. Ainda bem. Vamos esperar que o mesmo ocorra aqui em 2022. Resta saber quem será nosso Biden.
Bernardo,
ResponderExcluirSua análise sobre as eleições americanas é a mais coerente que vi até agora! Como sempre você arrasa!!
Parabéns!
Obrigadíssimo,Sheila. Um abraço e boa sorte, aí no olho do furacão.
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