domingo, 16 de fevereiro de 2020

"Cats", o filme: uma autópsia



Os comediantes Rebel Wilson e James Corden apareceram no Oscar deste ano vestidos como seus respectivos personagens em Cats (Jennyanydots e Bustopher Jones) e enfatizaram a importância de bons efeitos especiais em um filme, ao som do gargalheiro generalizado da platéia. Foi uma divertida auto-crítica com o que se supõe ser o principal problema de Cats: a idiotice dos efeitos especiais em CGI terem transformado os gatos em humanóides. Uma coisa horrorosa, ridícula, em que o que vemos, basicamente, é um monte de atores com rabo e orelhas de gato, mas estranhamente mantendo seus próprios rostos. Só que esse não é nem de longe o maior problema deste Cats. Há vários outros, e muito piores. Vamos a eles:

T. S. Eliot
1 - A música original de Cats é sublime. Obra-prima. Obra de gênio. Andrew Lloyd Webber eternizou o livro de T. S. Eliot no qual se inspirou. Mas o Old Possum's Books of Practical Cats, de 1939, não passa de um livro de 45 páginas com catorze poesias curtas sobre gatos. É um livro para crianças. Webber adicionou poesias inéditas de Eliot que recebeu de Valerie, a viúva do escritor, de onde vieram os temas de Grizabella e o Heaviside Layer, pescou outras e construiu um monumento poético-musical. Sua adaptação transformou a simpática casinha de Eliot em uma frondosa catedral. Tudo é melhorado. Não perderei tempo incensando um gigante como Webber, ou descrevendo o impacto que uma jóia como Cats teve sobre mim (foi o primeiro musical que assisti em Nova York, aos treze anos). Direi apenas que quando assistimos o espetáculo ao vivo, ou escutamos a trilha sonora, ficamos arrepiados. Cats é uma correnteza que leva quem estiver por perto, sem o menor esforço. Envolve e encanta da primeira à última música. O prólogo, "Jellicle Songs for Jellicle Cats", já deixa o público, recém-chegado, completamente atônito, maravilhado com esse choque inusitado de talento e energia.

Valerie (viúva de Eliot), Webber e - é claro - um gato

A seqüência, com "The Naming of Cats" e "The Invitation to the Jellicle Ball" são para o público respirar e realizar mental e emocionalmente o que está prestes a acontecer. E os gatos começam a se apresentar e a serem apresentados ao público. Uma seqüência perfeita e inigualável de seis números musicais: "The Old Gumbie Cat", "The Rum Tum Tugger", "Grizabella, The Glamour Cat", "Bustopher Jones", "Mungojerrie and Rumpelteazer" e "Old Deuteronomy". Há então "The Awefull Battle of the Pekes and Pollicles / The Marching Song of the Pollicle Dogs", o único número que eu realmente não considerei à altura do espetáculo, quebrando, a meu ver, a continuidade brilhante das apresentações. Mas em seguida as coisas voltam aos trilhos com "The Jellicle Ball", um belo número de música e dança. O ato se encerra com um primeiro gosto de "Memory".

O segundo ato começa dramático, com "The Moments of Happiness" e "Gus: The Theatre Cat". Vem o complexo número de Growltiger e a levíssima "Skimbleshanks: The Railway Cat". A reta final tem três obras-primas, uma atrás da outra: "Macavity: The Mystery Cat", "Mr. Mistoffelees" e "Memory". O fim traz a redenção de Grizabella na magnífica "The Journey to the Heaviside Layer", que transforma o teatro em um rio de lágrimas dos espectadores, e a conclusão de Old Deuteronomy com "The Ad-Dressing of Cats".

É isso. Cats não tem um enredo, propriamente, porque Eliot não pensou em suas poesias como um libreto. É uma introdução permanente dos gatos, que Lloyd Webber e Trevor Nunn (diretor da primeira montagem, em Londres) permearam com o sequestro do líder de todos eles - Deuteronomy - por Macavity, seu resgate pelos poderes mágicos de Mistoffelees, e a escolha de Grizabella para renascer através da viagem ao Heaviside Layer. O que tornou Cats o musical de maior sucesso de todos os tempos foi justamente isso: músicas geniais, artistas fantásticos, de talento superior, e números excepcionais de canto e dança como recheio e cobertura de uma idéia fundamentalmente simples. E se essa foi a receita para o sucesso mundial de Cats no teatro, foi também a razão pela qual o musical nunca foi tentado no cinema; é um espetáculo em que teremos qualquer coisa em torno de trinta pessoas vestidas e maquiadas para parecerem gatos, cantando e dançando sobre o que é ser um Jellicle Cat. A mídia para isso não pode ser outra senão o teatro. Em 1998 David Mallet dirigiu uma versão feita diretamente para TV, mas não passou de uma filmagem do espetáculo sem o público. Não é ruim, mas não provocou nem 1% da catarse de estar no teatro.

Cats pertence ao teatro. Podemos amar as músicas e vibrar com elas no CD mas o espetáculo deve ser visto ao vivo.

2 - O que vimos no cinema foi a negação absoluta de tudo isso. Está TUDO errado. Tom Hooper não deu uma dentro. Se em Les Miserables (que não consegui assistir inteiro, vencido por uma lufada de tédio na primeira entrada de Russel Crowe blaterando uma de suas canções) ele agradou parte do público, aqui o desastre foi total e completo. No teatro nos deixamos levar por Cats desde a abertura; é uma viagem deliciosa da qual saímos renovados, energizados e felizes. No filme a sensação é de mergulhar em uma piscina vazia. Aquela festa num salão enorme em que só apareceram três ou quatro pessoas. Ouvem-se os grilos. Os arranjos musicais são ruins. A orquestração é anêmica e as vozes em coro, que deveriam ser fortes e empolgantes, são insípidas, magras e sem nenhuma graça. Conseqüentemente, "Jellicle Songs for Jellicle Cats" passa em brancas nuvens e, por assim dizer, o filme não dá liga.

É compreensível que montagens cinematográficas de musicais mudem, aqui e ali, os arranjos de determinadas músicas. Sobretudo quando estão datadas ou quando o próprio autor sente que elas não funcionaram como deveriam. O próprio Lloyd Webber descartou a versão original londrina de "Mungojerrie and Rumpelteazer" e compôs uma nova, muito melhor, quando o espetáculo estreou na Broadway, um ano depois da estréia no West End. Mas nada justifica o que foi feito neste filme. Sentimos a substituição de arranjos vigorosos e substanciosos por um pastiche simplificado, sintético, light, como se a montagem fosse amadora.

Tim Hooper
3 - Na parte vocal essa discrepância é ainda pior. Entramos naquele que talvez seja, de fato, o maior problema deste filme: o elenco inexplicável e imperdoavelmente péssimo. Tom Hooper mostrou, com a escalação do já citado Russel Crowe, que não vê, exatamente, a necessidade de utilizar atores/cantores em papéis onde o talento para o canto é indispensável. Segue, por sinal, triste tendência hollywoodiana. Aqui, porém, o fracasso foi tão retumbante que até o público mais maleável e tolerante torceu o focinho. Todos os personagens foram mal-escolhidos. TODOS. Munkustrap é uma espécie de M. C. dos gatos, e é geralmente quem inicia muitas das apresentações, além de explicar a Jellicle Ball e a escolha que Deuteronomy fará para o Heaviside Layer. Precisa não apenas cantar muito bem, mas ser divertido e confiável. A dúvida berra: de onde saiu esse sensaborão ridículo, lamentável e sem nenhum talento chamado Robbie Fairchild? E o que passou pela cabeça de Tom Hooper para chamar alguém tão medíocre para um papel tão importante? Sua voz é fraca e desafinada. Sua cara é de prisão de ventre, ele não tem um pingo de dramaticidade, de humor ou de simpatia. Ele não canta, não dança e não interpreta. Não tem talento. A escolha desse zero ao infinito é erro tão grave que retira, de cara, uma das pernas do filme.

Rebel Wilson como Jennyanydots
Rebel Wilson me deu calafrios. No musical, a canção de Jennyanydots tem uma introdução de Munkustrap e é cantada por três gatas, num estilo divertidíssimo de uma Jazz Band dos anos 20, o que dá ensejo inclusive para a personagem se aventurar pelo sapateado, no fim. Ela é uma gata gorda, que passa o dia sentada e quando se move é para ensinar tricô e crochê aos ratos, e de quebra ainda tenta ajudar as baratas a evitar seu idle and wanton destroyment. No filme, temos a introdução fria e desagradável de Robbie Fairchild, cantando com sua usual expressão de morto-vivo aquilo que deveria ser irônico e bem-humorado, e Rebel entra cantando sozinha, em primeira pessoa, o que era cantado pelas três gatas. Estaca zero: Hooper foi tão incompetente que considerou suficiente o fato de Rebel ser engraçadinha em um ou outro sitcom televisivo. Não pensou nem por um momento que Rebel não canta e não dança. Não deveria estar em musicais. A música se perde. E o número todo é constrangedor, os ratos tem feições humanas, ela come as baratas que Jennyanydots originalmente salva, não há nenhuma dança e tudo tem um tom amadorístico. A sensação é exatamente aquela de ouvir alguém cantando mal em um karaokê. É um dos múltiplos cringeworthy moments do filme.

Terrence Mann: único
Rum Tum Tugger é bonito e vaidoso. Enlouquece as gatas com sua beleza e sua dança. Um dos personagens mais deliciosos de Cats e um dos melhores números musicais. Tom Hooper assassinou-o sem dó nem piedade, chamando, para interpretá-lo (mal) e cantar sua música (pior ainda), um zé-ninguém chamado Jason Derulo. Um desastre. Terrence Mann - como praticamente todos os atores e atrizes do cast original da Broadway - transbordava soul, carisma, talento e jogou nas alturas o nível da interpretação. John Partridge nem sequer se lhe compara, no filme de 1998, embora faça bom trabalho. Derulo, em sua insignificância, é aquele calouro gongado assim que tenta cantar. Se o número de Rebel é lembrado por ultrapassar as raias do grotesco, este aqui, nem isso. O número não existe.

O brilhante Timothy Scott (1955/1988),
primeiro Mistoffelees da Broadway
Nessa mesma linha de absoluta falta de talento é jogado no lixo o querido Mr. Mistoffelees, entregue a outro ilustre nada, chamado Laurie Davidson. É deprimente. Mistoffelees é o melhor dançarino de todos, é o mágico que salva Deuteronomy de Macavity, sua música é uma ode à felicidade, ele é talvez o único gato admirado pelo voluntarioso e metido Rum Tum Tugger, e no filme ele é um nada. A idéia de fazê-lo covarde e sem reais poderes mágicos é, em si, cretina e anacrônica, fugindo diametralmente daquilo que foi escrito por Eliot. Mas poderia ser testada, se o time de roteiristas tivesse se dado ao trabalho de desenvolvê-la corretamente, o que não foi o caso. Como já se esperava, e parece ter sido o grande requisito para estar neste filme, Davidson não canta, não dança e não sabe atuar. Sem falar que até sua maquiagem e seu CGI parecem ser de segunda. Ele lembra um sujeito atrasado para uma festa à fantasia, que se maquiou às pressas com uma caneta BIC e seu figurino foi todo improvisado. Ele é um erro ambulante.

É oportuno que Rebel Wilson tenha aparecido junto a James Corden no Oscar, porque há uma triste semelhança na intensa inadequação de ambos no filme. A exemplo de Rebel, James tem seu público graças à meia dúzia de sitcoms na Inglaterra. Estava, portanto, devidamente credenciado para destruir o obeso Bustopher Jones; a música do personagem é cantada por ele e um grupo de gatas que adora ser cumprimentado por Bustopher em seus passeios a restaurantes de luxo ou teatros de elite. Mais uma vez, eliminaram-se as gatas e entregou-se uma música linda e difícil, escrita para ser cantada por um verdadeiro barítono, a um sujeito incapaz de cantar uma única nota sem desafinar.

James Corden como Bustopher Jones
O único número que achei menos péssimo entre estes foi o de "Skimbleshanks: The Railway Cat". Steven McRae é do Balé Real de Londres e seu sapateado imitando um trem em movimento foi bonito. Ele é um grande bailarino e acabou responsável por alguns bons momentos. Infelizmente a música de Skimbleshanks é uma das menos inspiradas e mais infantis de Cats, e McRae não poderia cantar nem para salvar sua vida, então o alívio durou pouquíssimo.

A cereja podre de tudo isso é que, por razões que a própria razão desconhece (e não faz questão de conhecer), Hooper exumou a versão londrina de "Mungojerrie and Rumpelteazer", descartada há quase 40 anos, e utilizou-a no filme. Rejeitou a ótima versão da Broadway, usada sempre, e que era originalmente cantada por Mistoffelees ou pela própria dupla. E o resultado conseguiu ser pior, porque se nas outras o que vemos é gente ruim cantando músicas boas, aqui há gente ruim cantando uma música que nem o autor considerava boa.

Francesca Hayward como Victoria
4 - Na ausência do público do teatro e não desejando utilizar o artifício de fazer os atores cantarem olhando para a câmera, como se estivessem se apresentando ao público que assiste, Hooper e os roteiristas do filme resolveram aumentar o papel de Victoria e transformá-la em fio condutor da trama. A personagem originalmente não tem falas e canta pouquíssimo mas protagoniza cenas interessantes como bailarina. Provavelmente por essa razão escalaram uma bailarina clássica chamada Francesca Hayward, para o papel. O filme começa com Victoria dentro de um saco, sendo abandonada pelo dono e jogada em meio aos gatos, e a partir daí eles se apresentam para ela. A idéia não é ruim e até funcionaria, se alguém ali não tivesse inventado de Victoria cantar uma música inédita, composta por Taylor Swift (sobre quem falarei mais à frente) e Lloyd Webber. Esqueceram duas coisas: em primeiro lugar, Cats é um repositório de músicas extraordinárias e não precisa de outra, especialmente composta por Taylor Swift, contratada com o fito único e exclusivo de atrair o público teen (tiro que não só saiu, mas explodiu pela culatra). E segundo, pra variar, a seara de Francesca é a dança e não o canto.

Victoria: divertindo-se mais
do que se esperaria
Sua música, "Beautiful Ghosts", é bonitinha mas acaba engolida e esquecida pela interpretação capenga e pouco memorável da bailarina. 
Também pra lá de estranha é a postura permanente de flerte da gata, sempre empolgadíssima e cheia de olhares para qualquer um. Por suas atitudes nem sequer imaginaríamos que ela acabou de ser cruelmente abandonada à própria sorte; ela não parece, nem de longe, scared to call them my friends and be broken again, como diz a canção de Taylor.

Não obstante, a bailarina é muito bonita e se desenvolvessem melhor seu personagem, não a obrigassem a cantar uma música inteira e - claro - se o filme não fosse tão horrivelmente ruim como um todo, ela poderia ter sido para este Cats o que a linda belga Veerle Casteleyn foi para a versão de 1998. Seu papel de Jemima acabou absorvendo interlúdios musicais de personagens menores como Victoria e Tantomile, e Veerle surgia de vez em quando para cantar no máximo uma ou duas frases com sua voz pequena mas doce, afinada e aguda, como o canto de um anjo, e hoje é a única e mais grata lembrança dessa versão.

A Jemima de Veerle Casteleyn, em 1998: um anjo

5 - Passemos agora ao elenco "famoso" do filme, onde o miscasting merecia ser punido com cadeia. Antes, é bom explicar que Tom Hooper elaborou em cima do enredo original; no filme, Macavity seqüestra Deuteronomy porque pretende forçar o líder dos gatos a escolhê-lo para o Heaviside Layer. Uma bobagem sem o menor sentido, já que Macavity é jovem, faz o que quer impunemente e não sente qualquer remorso por suas maldades; pelo contrário, ele sente prazer em ser perverso e portanto não teria qualquer razão para renascer, o que, para todos os efeitos, significa uma nova chance de vida. Seu cúmplice no seqüestro é Growltiger, que esconde Deuteronomy e os outros gatos seqüestrados por Macavity, em seu barco. Feita a explicação, eis quem paga o menor dos micos: Ray Winstone. Por que o menor? Porque 90% de seu papel, o pirata Growltiger, foi cortado. O que sobrou não chega nem a dois minutos de filme. Sorte dele.

Idris: patético
Macavity é descrito no livro de Eliot como um ginger cat, ou seja, laranja e malhado. Ele se encaixa no perfil do psicopata: respeitável, exímio em matemática, assíduo em jogos de cartas, mas ao mesmo tempo um criminoso frio, calculista e brilhante, "um monstro de depravação" que jamais é incriminado pelo que faz porque a polícia não consegue encontrá-lo na cena do crime de jeito nenhum. Idris Elba é um Macavity marrom, com as lentes de contato mais falsas que o cinema já viu, e poderes mágicos que o permitem aparecer e desaparecer. Ou seja, rigorosamente nada a ver com sua descrição. Se fosse mudo como seu personagem e apavorasse apenas pela descrição terrível que todos fazem dele o dano seria menor, mas ele fala e suas falas são bobas e provocam a mesma vergonha alheia de todas as falas inventadas para o filme (o musical não tem diálogos e tudo é cantado). O mico do ator só não é maior do que a tristeza provocada por aquilo que fizeram com seu número. Macavity não aparece durante a música em que é apresentado; essa atribuição cabe a duas gatas, Bombalurina e Demeter, invariavelmente grandes cantoras, sendo essa uma das melhores músicas da peça. Tom Hooper resolveu chamar Taylor Swift para o papel de Bombalurina, e limou Demeter do número, deixando Taylor sozinha para lapidar um diamante musical como "Macavity: The Mystery Cat".

O resultado é um anti-clímax. Taylor não tem estofo para uma música como essa, derrapa várias vezes e o fim da canção - que no teatro é apoteótico, sensacional, com orquestra e elenco num crescendo espetacular, fazendo vibrar todos os sentidos do público - recebe uma ducha de água gelada quando Idris se mete a cantar o último refrão junto a Taylor. Bizarro e triste ao mesmo tempo.

A Grizabella de Hudson: gemebunda
Grizabella não está no livro de poesias de Eliot porque ele a considerava um personagem adulto e dramático demais para figurar em um livro infantil. Tinha toda a razão; a gata velha foi linda e glamourosa na juventude, mas quando isso acabou ela haunted many a low resort near the grimy road of Tottenham Court, referência claríssima ao fato dela ter, em algum momento, se prostituído. Seu enredo vem de dois poemas, "Grizabella the Glamour Cat" (inédito) e "Rhapsody on a Windy Night". Ela tem entre 50 e 60 anos, e deseja se reaproximar dos Jellicles, embora a evidente rejeição deles faça dela um personagem amargo e ressentido. Jennifer Hudson, como se vê, não poderia estar mais distante da personagem. Manda a justiça que eu observe, todavia, que a idade das Grizabellas tem diminuído com o tempo e as montagens mais recentes fazem concessões, nessa área, que destoam da concepção original. O subtexto da prostituição também parece ter evaporado e ao invés de uma mulher vivida, trazendo no rosto as marcas do sofrimento e das provações, Jennifer faz uma Grizabella fofinha, vulnerável e gemebunda. É chorona, está sempre com cara de coitadinha e assustada, olhando tudo de soslaio. Não gostei nada. Jennifer tem antecessoras do nível de Betty Buckley (considerada a melhor cantora da Broadway em todos os tempos) e sua gritaria pode ter funcionado bem em Dreamgirls, mas não passou nem perto de me convencer em Cats.

Betty Buckley: inexcedível. Quando assisti Cats ela já havia sido substituída por Laurie Beechman, mas sua voz maravilhosa está na trilha original e há uma apresentação compacta de Memory no Emmy de 1983, que premiou Buckley como melhor atriz de um Musical.

Curiosamente, quem foi escalada para a dobradinha Grizabella-Jennyanydots na estréia mundial de Cats em Londres, em 1981, foi ninguém menos do que Judi Dench. Dias antes da estréia ela teve um acidente e deixou o espetáculo, substituída permanentemente por Elaine Page. Não sei como lidar com isso. Judi, sendo uma das melhores atrizes inglesas da segunda metade do século XX, não era estranha aos musicais. Por incrível que pareça, ela foi Sally Bowles antes de Cabaret virar filme. Ouvi gravações originais e ela cantava bem. Tinha uma voz bonitinha, afinada e charmosamente rouca. Seria uma excelente Jenny e certamente uma boa Grizabella, mas - minha opinião - jamais alcançaria a tragicidade musical de Page ou (muito menos) de Buckley.

Em 1998 foi organizada uma homenagem ao produtor Cameron Mackintosh, que produziu inúmeros musicais (inclusive Cats), chamada Hey, Mr. Producer! Judi participou cantando "Send In the Clowns", escrita por Stephen Sondheim para o musical A Little Night Music, de 1973. Na ocasião fiquei um pouco incomodado de ver a dificuldade com que Judi desfiava as notas da soporífera composição. Sua voz para o canto, antes "afinada e charmosamente rouca", era apenas um fiapo, agora. E mesmo assim quis o destino que Dench voltasse a Cats quase quarenta anos depois.

Judi: A Velha Deuteronômia
Só Deus sabe o quanto me dói ter que descer o sarrafo em uma atriz que eu admiro tanto, mas sua participação neste filme é tétrica. Alguém - suponho que seja Hooper - cometeu a inqualificável asnidade de transformar Old Deuteronomy em uma gata, e o papel recaiu sobre Judi. Faltam-me as palavras. O papel de um barítono com registros de tenor, responsável pela divina música de encerramento, entregue a uma (grande) atriz que não consegue mais cantar. Que está naturalmente desafinada, não consegue mais modular, não pode esticar nem por um segundo as notas. Brian Blessed tinha 45 anos quando interpretou o papel na estréia londrina. Ken Page tinha 26 anos, na estréia de NY. Judi está com 86. Além do absurdo surrealista de Deuteronomy virar mulher, aparentemente ninguém lembrou que o papel é como Lear; o personagem é velho mas o ator que o interpreta tem que estar no topo de suas habilidades artísticas. Não vou me estender. É terrível ver Dench retirando a fórceps cada uma das frases de suas músicas. Terrível. É o parto de um rolo de arame farpado. "The Ad-Dressing of Cats" é a mais dolorosa das implosões. Se as lágrimas viessem não seriam de emoção, e sim de raiva e dor.

Ian: Gus
Para que não se diga que tenho apenas críticas ao cast famoso, direi que um ponto menos negativo - e inesperado - foi Ian McKellen no papel de Gus, The Theatre Cat. Chamar um velho ator para fazer o papel de Gus é expediente já utilizado na versão de 1998, com John Mills. É interessante, embora vá inteiramente contra a idéia do personagem, que canta I once played Growltiger... could do it again, dando ensejo para o início de toda a seqüência de Growltiger e Griddlebone, que se passa em sua lembrança. Ou seja, Gus é velho no presente mas na recordação que compartilha com o público ele interpreta um pirata temido e viril, com um número musical de onze minutos com sua amada, a coquete e volúvel Griddlebone. Voltamos ao paradoxo de Lear: a necessidade de um ator jovem e com toda a potência de sua voz, no papel do personagem. Mais do que isso: o número dos dois é uma sátira de árias como as de Puccini (sites sobre o musical referem-se a ele como puccini-esc) e um verdadeiro display do melhor canto lírico que se verá. Com efeito, só dois cantores líricos talentosíssimos poderiam brincar com algo tão difícil.

Firefrorefiddle, the Fiend of the Fell...
Infelizmente, e talvez por essa dificuldade, o número tem sido limado de produções mais recentes, o que retira de Gus grande parte de sua graça e o deixa meio que sobrando entre todos os outros. Ele entra, sua música é um lamento de seis minutos e ele vai embora. Neste filme, entretanto, ao invés de choramingar e sair amparado por Jellylorum (como foi o caso de John Mills), Ian McKellen dá um agudo bonito no fim da última frase de sua canção (Firefrorefiddle, the Fiend of the Fell), ajudado pelos trovões criados por Mistoffelees. O início todo, que deveria ser cantado por Jellylorum, é mais uma vez arruinado pela idiotice dos próprios gatos narrarem suas histórias em primeira pessoa. Mas pelo menos o fim é salvo. E é a melhor cena do filme.
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  • O site Cats Musical Wiki é um belo arquivo de tudo que tenha a ver com o musical de Andrew Lloyd Webber.

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