Não tive sucesso em minhas tentativas. Conheci Dona Eva, a devotada empregada de Jânio e Eloá, que em uma dessas visitas foi até a porta para ver quem queria falar com Jânio. Foi docílima e praticamente se desculpou por não poder me atender. Num outro dia um enfermeiro de nome Sílvio foi até o portão. “O Dr. Jânio não está bem hoje. Tente semana que vem”. Em outra ocasião, enquanto proseava com um dos seguranças, estacionou um carro na porta e dele desceu uma velhotinha. O segurança me cutucou: “Olha, essa aí é a Dona Kalime, secretária do Jânio. Veio visitar o velho”. Já ouvira falar de Kalime Gadia e a cumprimentei polidamente, sem ter, ainda, idéia da importância daquela mulher nas vidas de Jânio e Quintanilha Ribeiro. Ela morreu semanas depois. Terá sido essa a última vez em que os dois se viram?
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Jânio e Kalime despachando no Ibirapuera |
Sem poder entrar, eu me contentava em conversar com os seguranças, que também gostavam de um bom papo, na pasmaceira que era fazer a segurança da casa durante o dia. Só tinham elogios para Jânio e Eloá. Alguns já trabalhavam com o casal há mais tempo e rememoravam, melancólicos, os bons momentos. Os mais chegados a Jânio sofriam, mesmo. O ex-presidente não estava inválido mas sua têmpera ativa e agitada era agora lembrança, por conta dos problemas de visão e locomoção. O golpe de misericórdia veio em julho: Jânio teve seu segundo AVC e ficou preso a uma cadeira de rodas. Com Eloá a situação era bem pior. O câncer, detectado em 1984, vinha piorando a cada dia e a mansão da Acutiranha se transformara em um entra e sai constante de médicos.
Com Tutu, em agosto de 1990 |
Eloá, Jânio e Tutu em 1960
A espera não ajudou em nada. Em novembro Dona Eloá morreu e em menos de um mês, Tutu tirou Jânio da mansão na Acutiranha e o levou para um flat na rua Haddock Lobo. A Folha de S. Paulo noticiou a mudança, no início de 1991 e colocou uma foto do flat na capa do jornal. Guardei-o comigo. Aproximava-se o 74º aniversário de Jânio. Ciente de que Tutu estava, agora, morando com o pai no flat, escrevi duas cartas, uma para ela e uma para ele, dizendo basicamente a mesma coisa: queria conhecê-lo, conversar com ele, ter o privilégio de apertar sua mão. Na manhã do dia 25 de janeiro, não tive dúvidas: munido da edição da Folha que mostrava o flat, fui até a Haddock Lobo e percorri a rua, começando na Estados Unidos, até encontrar o referido prédio. Não demorou, ele ficava na segunda ou terceira quadra. Na portaria, tive a sorte de encontrar o enfermeiro Sílvio, com quem já conversara na Acutiranha. Ele sorriu, como se lesse minha mente: “Ah, conseguiu encontrar?” Depois perguntou, à queima-roupa: “Você vem na festa, hoje?” Respondi-lhe timidamente que nem sabia que haveria uma festa. No mais, não tinha qualquer intimidade nem com Jânio nem com a família e não me atreveria a aparecer sem ser convidado. Ele descera até a portaria justamente para recolher flores e cartões deixados para o ex-presidente e eu aproveitei e lhe entreguei minhas cartas.
Outubro de 1990, posando para a Folha de S. Paulo no dia da eleição estadual. Talvez a última foto de Jânio e Eloá juntos |
Fui embora feliz. Entregar as cartas a Sílvio era a certeza de que pelo menos Jânio leria – ou alguém leria para ele – a carta que lhe escrevi. Já não importava mais que eu o conhecesse ou não. A bem da verdade, eu não estava sequer preparado para um encontro daquela magnitude. Não tinha a cultura política e histórica necessária para me defrontar com alguém como Jânio. Pensava nisso, totalmente distraído, quando cheguei em casa e meu irmão logo disparou: “Escuta, o assessor da Tutu Quadros ligou aqui”. Referia-se ele a Rivaldo Chinem, na época assessor de Tutu na Câmara dos Deputados. Eu evidentemente deixara telefone e endereço nas cartas que escrevi. “Disse que a Tutu lembrou do encontro com você na Bienal, que ela e o Jânio adoraram o que você escreveu e te convidaram para a recepção que ocorrerá hoje no restaurante do flat onde ele mora”. Fiquei chocado. Convivia com política desde os 13 anos e já conhecera dezenas de políticos, inclusive prefeitos e governadores, mas conhecer Jânio era algo inimaginável. Comecei a me dar conta do quanto haviam sido absurdas minhas visitas à Acutiranha. Só as encarava com aquela calma toda porque no fundo nunca acreditei que conseguiria entrar. E agora era uma questão de tempo até estar na presença do velho Jânio.
Em sentido horário: Robertão, Brasil Vita, Farabulini Jr. e José Aparecido de Olivieira |
A festa era na verdade um jantar, só que os pratos quentes sumiam diante das maravilhas de sobremesas. O ramo da culinária que atraía (e ainda atrai) Tutu era dos doces, e havia, ali, uma profusão de tortas, bolos, pudins, guloseimas e demais maravilhas que fariam a Holandesa corar de vergonha. Abracei Tutu e lhe agradeci do fundo do coração o privilégio de poder estar ali. Ela me agradeceu por comparecer, estava de ótimo humor e vez por outra levava seu cigarro à boca de Jânio. Quando via a brasa arder, Tutu tirava o cigarro e pouco depois Jânio expirava a fumaça. O poeta amparense Marcelo Henrique, presente à recepção antes de minha chegada, contou anos depois que Jânio também bebeu champagne e comeu um pedaço de bolo que tinha conhaque no recheio. “Não jogue fora, papai, fui eu mesma que fiz”, foi a divertida recomendação da filha de Jânio. Ao agradecer a presença dos convidados, Tutu afirmou: “Papai está bem, está forte, e só precisa descansar”.
Por uma dessas leis de Murphy que nos levam ao suicídio, eu não pude levar uma câmera fotográfica à festa. Desesperado, cutuquei o fotógrafo da Manchete, único representante da mídia presente ao aniversário. Implorei-lhe que tirasse uma foto minha com o ex-presidente. O sujeito não se comoveu nem um pouco: “Isso aqui é cromo. Não tenho como tirar uma foto e te mandar”. Sem ter idéia do que era um “filme de cromo”, sentei-me resignado, em uma das mesas e aguardei minha vez de falar com Jânio.
Do meu lado, uma velha assessora do ex-presidente. Simpática, falou-me da amizade que tinha há anos com Jânio e mostrou-me um pequeno álbum de fotos. Pareciam ser da década de 70. Em todas elas, Jânio, sozinho, com ela, com amigos. Ao lado do álbum, uma pequena câmera. Tomei coragem e perguntei se ela não se importaria de me fotografar com Jânio. Fui dramático e suplicante, relatando inclusive meu malfadado diálogo com o sujeito da Manchete. Ela riu de minha desgraça e concordou em tirar a foto.
A foto com Jânio, 25/01/1991 |
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Paulo de Tarso Santos |
Em 2001 conversei extensamente com Paulo de Tarso Santos. Contei a esse janista da velha guarda sobre meu encontro com Jânio e ele arregalou os olhos. Respondeu-me então que estava rompido com o ex-presidente há mais de 20 anos quando recebeu o convite de Tutu para essa mesma festa de 1991. Sabendo que Eloá estava morta e que Jânio estava entrevado, deixou de lado as mágoas e compareceu ao flat da Haddock Lobo (quando eu cheguei ele já tinha ido embora). A mesma coisa se repetiu. Paulo sentou-se ao lado de Jânio e falou com a amizade de antigamente, “Jânio, vim te dar um abraço, estamos aqui, juntos como sempre”, etc., e qual não foi a surpresa de Paulo quando Jânio lhe beijou a mão. No caso do ex-governador de Brasília, não era só a carência, mas também a alegria de estar rodeado de alguns de seus velhos amigos, os amigos de uma época em que Jânio era o rei.
Para coroar aquela noite, a velha assessora disse que tirara uma ótima foto do momento em que falei com Jânio. Não vi mais razão para permanecer na festa. Despedi-me de Tutu e fui embora. Era tamanho o meu choque que peguei o ônibus errado e tive que andar por quase 40 minutos. Tanto melhor, porque me ajudou a digerir a enormidade do que acabara de acontecer.
Estava nos Estados Unidos quando soube que Jânio tinha morrido, no dia 16 de fevereiro de 1992. De certa forma respirei aliviado. Sua morte foi lenta e cruel. Seis anos depois, no vazio de nossa bibliografia histórica, tomei para mim a tarefa de biografá-lo. Prometi a mim mesmo que me desvestiria de quaisquer sentimentos pessoais ou subjetivos por Jânio na hora de esquadrinhar sua personalidade e sua obra política e administrativa. Não precisei; a pesquisa, ao longo dos anos, se encarregou de fazê-lo por mim. Tenho atualmente a mais perfeita noção de sua humanidade, ou seja, a equivalência de suas grandes qualidades e de seus defeitos múltiplos.
Hoje, 25 de janeiro de 2011, meu encontro com Jânio completa 20 anos. No tempo que me separa daquele longínquo 25 de janeiro de 1991, conheci centenas e centenas de políticos, atores, cientistas, escritores, esportistas, compositores, juristas, músicos, professores e etc. Nenhum deles me provocou a emoção de estar frente à frente com Jânio Quadros.
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Jânio - Vida e Morte do Homem da Renúncia
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Bernardo Schmidt
Editora O Patativa
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Ver também:
- A Biografia Definitiva de Jânio
- A Biografia de Jânio no Programa do Jô
- Dirce "Tutu" Quadros (1943/2014)
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