Falar de um artista assim, perfeição
suprema, vulto radioso nos páramos da arte, é uma temeridade. Elogiá-lo,
estupenda insânia. Rossi não conquista aplausos, impõe ovações. Quando aparece
aquela fronte soberba e senhoril, onde se reverberam os reflexos de uma luz
imensa e desconhecida, o espectador, deslumbrado, pasma de estupefação. Não
encanta, seduz; não delicia, atrai; não prende, subjuga! (Diário de Notícias,
12/5/71)
Digamo-lo primeiro que tudo: Rossi é um
gênio. É preciso desabafar nesse grito, para depois falarmos desses prodígios
de artes, dessas enormes revelações de sentimento, desse belo, adorável e
majestoso, que nos alucina e nos derruba. Nunca assistimos a um espetáculo
semelhante. (...) Vê-lo de chapa é
ver as pupilas de um leão. Treme-se, e ao mesmo tempo há um doce enlevo a
coar-se-nos pelas fibras; o coração aperta-se mas não sei que bálsamo nos unge,
que viva claridade nos alaga. Entrevimos paragens desconhecidas, porque nos
rasgam novos horizontes; a luz atrai-nos, sentimos que nos fere, que nos cega,
mas não deixamos de a contemplar. E Rossi é um gênio. (Eduardo Augusto Vidal,
Diário de Notícias, 20/5/71)
O Sr. Rossi tem a suprema habilidade (e parece-nos que é isso o ideal da arte) de transmitir ao auditório as suas idéias e sensações, não só nas grandes cenas, o que não é muito difícil, mas naquilo que parece mais insignificante. O espectador ouvindo-o, julga que aqueles sons vêm da própria consciência, do próprio coração, e diz consigo: “Nestas circunstâncias eu faria o que este homem está fazendo, diria exatamente o que ele diz”. E aquele que vai ao teatro com o coração e a inteligência, sentir e extasiar-se, é surpreendido pelo descer do pano, e só então se lembra que está assistindo a um espetáculo, e não a uma cena da vida real. (Ferreira de Araújo, O Guarany, 21/5/71)
Rossi é a última, a suprema encarnação da peregrina Deusa! Hoje é ela que vem submissa de amores, implorar ao grande gênio, um dos seus olhares cintilantes. Ver a seus pés uma população inteira, palpitante de entusiasmo, pronta a galgar o impossível, a uma palavra dos seus lábios, eis o que é o gênio, eis o que é Rossi no esplêndido sólio (trono) das suas glórias imortais! (...) Fiquem, porém, sabendo os meus leitores que, de hoje em diante, não se diz mais “ver Nápoles e morrer”. Agora é “ver Rossi e depois soltar o vôo para a eternidade”. (Diário de Notícias, 17/5/71)
O Sr. Rossi tem a suprema habilidade (e parece-nos que é isso o ideal da arte) de transmitir ao auditório as suas idéias e sensações, não só nas grandes cenas, o que não é muito difícil, mas naquilo que parece mais insignificante. O espectador ouvindo-o, julga que aqueles sons vêm da própria consciência, do próprio coração, e diz consigo: “Nestas circunstâncias eu faria o que este homem está fazendo, diria exatamente o que ele diz”. E aquele que vai ao teatro com o coração e a inteligência, sentir e extasiar-se, é surpreendido pelo descer do pano, e só então se lembra que está assistindo a um espetáculo, e não a uma cena da vida real. (Ferreira de Araújo, O Guarany, 21/5/71)
Rossi é a última, a suprema encarnação da peregrina Deusa! Hoje é ela que vem submissa de amores, implorar ao grande gênio, um dos seus olhares cintilantes. Ver a seus pés uma população inteira, palpitante de entusiasmo, pronta a galgar o impossível, a uma palavra dos seus lábios, eis o que é o gênio, eis o que é Rossi no esplêndido sólio (trono) das suas glórias imortais! (...) Fiquem, porém, sabendo os meus leitores que, de hoje em diante, não se diz mais “ver Nápoles e morrer”. Agora é “ver Rossi e depois soltar o vôo para a eternidade”. (Diário de Notícias, 17/5/71)
Rossi, como todos os gênios, é
inadjetivável; achamos mesmo insuficiente conferir-lhe o título que conferiu o
Egito a Ésquilo, a quem considerava um colosso: Pimander, inteligência
superior. (O Guarany, 21/5/71)
Desculpe-me o leitor. Ainda não há vinte
e quatro horas que assisti à representação de Othello... Estou trôpego. (Mundo
da Lua, 13/5/71)
Quem admira Ernesto Rossi tem orgulho de
ser homem. (Guimarães Junior, Diário do Rio de Janeiro, 14/5/71)
Ernesto Rossi
não há esquecê-lo; (...) o gênio é assim! Nas suas criações sublimes nós,
pobres mediocridades, não admiramos o homem, adoramos Deus! (Diário de
Notícias, 25/5/71)
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Giulio Carcano |
Se foi tardia para as nossas platéias a
revelação do gênio de Shakespeare, foi por tal modo esplêndida que jamais se
riscará da memória dos que assistiram ante-ontem a primeira representação da
tragédia Othello. Acostumados à pálida, à insípida e absurda imitação de Ducis,
a obra robusta do grande poeta dramático pareceu a princípio singular, para não
dizer extravagante e incompreensível. Entretanto, a pouco e pouco, clareou aos
lampejos da paixão o arcabouço do grande drama. Rutilou no diálogo a poesia
ardente, a linguagem colorida cujo segredo como ninguém possuiu ele. O público,
arrebatado, sorveu a longos haustos (goles) os perfumes embriagadores daquele ciúme
oriental. (13/5/71)
Nos comentários
sobre o espetáculo há alguns consensos. Primeiramente, Shakespeare encontrara o
intérprete ideal de sua poesia: “Othello
de Shakespeare interpretado por Ernesto Rossi é o mais belo sonho de arte que
seja dado gozar a um poeta. É vendo e ouvindo Rossi nesses cinco atos (...) que
se compreendem as simpatias ardentes, as admirações delirantes que ele deixa
por toda a parte. De fato, que sublime interpretação a desse papel!” (AR, 13/5/71)
O Diário do Rio de Janeiro concorda: “A
figura de Othello campeia sobre a forma escultural, realizando a idéia
shakespeariana de uma maneira metódica e fiel. Ernesto Rossi, desde que penetra
em cena, revela o poder miraculoso do seu gênio na tradução do ideal de
Shakespeare. A cabeça do mouro destaca-se como um relevo em bronze ou mármore
escuro; é de uma admirável, sangrenta fidelidade, por assim dizer”. (13/5/71) E
o Diário de Notícias ratifica: “Amor,
ciúme, vingança, eis as paixões vorazes que abalam sobre o tablado com toda a
fidelidade o desditoso Othello, de Othello
sim, porque em cena não se vê Rossi, mas a própria criação de Shakespeare. Mas
que amor! Que ciúme! Que afeto marital!” (13/5/71)
Guimarães Junior
elabora: “Só a ousadia de Rossi teria o poder de arrancar à mina shakespeariana
o enorme diamante Othello! O tempo
vale menos que o fulgor tempestuoso do gênio, e a alma de Rossi é como que o
transumpto [reflexo] da posteridade onde já brilha com toda a justiça o nome
monumental do poeta de Hamleto e do
sonhador de Julieta e Romeu! Ernesto
Rossi é incomparável na interpretação do poema de Shakespeare. Digamos melhor:
Rossi só é comparável a Shakespeare”. (DRJ, 14/5/71)
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Desenho de Rossi na cena do suicídio de Othello |
Quando cai na alma impetuosa e arrogante
do mouro a primeira centelha do atroz ciúme que o levará ao assassinato e ao
suicídio, causa estupefação e assombro o trabalho do trágico italiano. O
público arqueja e desmaia de admiração e horror. Ernesto Rossi é inexcedível na
grande tragédia; possui todas as cóleras do leão africano e todas as ternuras
do mais puro, apaixonado e entusiástico sentimento do coração humano. (DRJ,
13/5/71)
Quando as palavras envenenadas de Iago
começam a perturbar-lhe a serenidade do espírito, sob as vestes bordadas do
general da sereníssima república reaparece o pelo fulvo da besta fera. A
ingenuidade daquele coração quase infantil transforma-se em ódio feroz. Já não
fala, ruge; já não caminha, salta; já não tem mãos, tem garras. Os olhos
parecem luzir, sedentos de carniça; os dentes alvejam e rangem por entre os
lábios arregaçados por uma contração medonha. A voz não tem mais som humano; é
o grito do leão faminto. (...) Pouco a pouco, ora com palavras dúbias, ora com
insinuações mal disfarçadas, Iago vai agitando aquela grande alma. O leão
desperta; e no seu primeiro ímpeto quase a primeira vítima é o traidor. É uma
cena medonha essa: Iago está quase esmagado sob os joelhos de Othello, no
entanto que as garras parecem hesitar, ainda. (AR,
13/5/71)
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Rossi com o provável figurino da chegada de Othello a Chipre Fonte: "The Italian Shakespearians", de Marvin Carlson, apud RHINOW, 2007 |
Assusta e deslumbra o perfil
monstruosamente belo do mouro na tragédia imortal! É completa a transfiguração
do artista. O jaguar é que possui aquela carícia de ponta de garra; o abismo é
que tem no seio aqueles gemidos profundos e roucos; a glória, a glória e não a
arte!, é que conserva em si a fortaleza que o trágico italiano espalha de sua
pessoa como uma transpiração ideal. (...) O Othello de Shakespeare não se
descreve. É o poema do leão ferido; a epopéia do amor bruto e selvagem, como a
natureza africana. Mas Rossi chega a quase fazer esquecer o nome do autor da
tragédia, porque ninguém que leu Shakespeare imaginou aquilo. (DRJ,
14/5/71)
Nas transições, nos monólogos, na
explosão dos afetos encontrados, nos impulsos frenéticos, nos acessos de
cólera, rugindo como o rei do deserto, em tudo é grandioso, em tudo se eleva
incontestavelmente à altura do gênio. Nos últimos três atos do Othello é onde
há mais de maravilhoso, onde os dotes artísticos do trágico se apresentam em
todo o fulgor. As situações são surpreendentes, e são nesses quadros vivos que
Rossi logra, para a sua coroa de verdadeiro artista, novíssimos florões; cada
frase é acompanhada de atitude mais eloqüente, mais expressiva, que só o muito
estudo guiado por muito gênio podia criar. (DN, 13/5/71)
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O Othello de Rossi e o lenço de Desdêmona Fonte: "Otello" (Teatro Alla Scalla de Milão, 2004), apud RHINOW, 2007 |
O que escolher de preferência nos
inúmeros tesouros da interpretação do artista? A luta com Iago? Os diálogos
terríveis e trêmulos com Desdêmona? A cena pavorosa da estrangulação? As
últimas palavras e gestos do suicida agonizante? É o poema do terror, essa
tragédia; e em cada estrofe assume mais altas, mais extraordinárias proporções
o gênio maravilhoso do primeiro artista da Itália. O público, ao terminar a
tragédia, subiu ao delírio da vivacidade das ovações e nas chamadas ao
proscênio. Triunfo mais espontâneo e justo jamais teve o teatro. (DRJ,
13/5/71)
O comentário de A Reforma sobre o 5º ato vem repassado
em emoção:
As cenas que constituem o último ato do
grandioso poema dramático estão escritas com lágrimas. É o patético e o
terrível no seu auge. A agonia de Desdêmona estrangulada pelas mãos do
selvagem; o castigo de Iago, ferido por Othello; finalmente a morte deste
degolando-se, são cenas como nunca as viu o nosso teatro. Não há palavras para
descrevê-las, nem para pintar a última entrevista de Othello e de Desdêmona; as
súplicas angustiosas desta, os seus veementes protestos de inocência e os
rugidos da fera que vê naquelas lágrimas a prova da sua desonra e da traição. Quando
caem as cortinas da alcova e continuam a ouvir-se os sarridos (asfixia) da vítima e os gritos hediondos do algoz, um imenso calafrio correu
por todo o auditório. Houve uma pausa que pareceu um século... por fim tornaram
a abrir-se as cortinas e saiu daquela alcova um monstro, hirto, medonho,
caminhando como um ébrio e tendo em cada gesto uma imprecação e um remorso.
Ao saber da inocência de Desdêmona,
Othello corre a abraçar-se ao cadáver da mulher amada. Cobre de carícias, de
beijos ferventes aqueles restos inanimados, e depois surge armado do terrível
alfanje para vingá-la. Ernesto Rossi desde a primeira à última cena de Othello
é uma perfeição ideal. É um assombro vê-lo e ouvi-lo. Os aplausos frenéticos,
continuados das platéias são pequena recompensa a tamanho esforço. É um artista
sublime. O que nos havia revelado Adelaide Ristori está excedido de muito pelo
que nos revela agora Ernesto Rossi. Alia ele a suprema naturalidade ao
grandioso e ao belo da arte. Atinge aos máximos efeitos trágicos sem nunca
deixar de ser verdadeiro. É colosso, mas é homem; sente, e não se diverte a
fazer posições para ferir os olhos antes de tocar o coração. E entretanto, que
escultor! Não há um momento só em que não possa ser copiado. (13/5/71)
Celestina de
Paladini e Giacomo Brizzi também foram elogiados: “A Sra. de Paladini
interpretou com toda a paixão e exuberância de talento a parte difícil de
Desdêmona. Nas últimas cenas do 4º e 5º atos a distinta atriz esteve
esplêndida. O Sr. Brizzi granjeou merecidos aplausos e teve excelentes rasgos
de artista”. (DRJ, 13/5/71). “Sejamos
justos dizendo que ao seu lado conquistou merecidos aplausos a Sra. Celestina
de Paladini no papel de Desdêmona. No 4º ato, na cena com Othello, teve ela um
magnífico lance dramático. O Sr. Brizzi também interpretou o papel de Iago com
inteligência e energia. O mesmo diremos da Sra. Cottin que no papel de Emília
conquistou aplausos no último ato”. (AR, 13/5/71) O Diário de
Notícias foi efusivo; registre-se que o autor da crítica era o próprio dono
do jornal, Clímaco dos Reis, que escrevera o comentário movido pela intensa
admiração que nutria por Rossi desde sua chegada:
Paladini é digna discípula de Rossi. Tem
voos artísticos de mérito inconcebível. No Othello, por vezes arrancou bravos à
platéia entusiasmada. Na situação em que protesta contra o infundado ciúme do
esposo, a exímia artista parecia a personificação animada dessas imagens que
julgamos só um Buonarroti ou um Sanzio podia evocar das trevas do passado, para
destacar sobre a tela ou esculpir sobre o mármore. Brizzi, na parte de Iago,
correspondeu à devida interpretação, e o público coroou-lhe os esforços, assim
como à Sra. Cottin.
(13/5/71)
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Celestina de Paladini, 1875 |
A crítica imparcial e reta exige que
digamos que essa representação esteve longe de fazer justiça à peça. Esta não
só sofreu bastante pelos cortes e modificações que lhe deram, como também teve
a infelicidade de não ser interpretada corretamente pelos artistas incumbidos
dos papéis principais. O papel de Iago foi o que teve o pior desempenho. O Sr.
Brizzi soube personificar o velhaco astuto, mas sempre lhe faltava alguma coisa
para ser Iago; e não conseguiu revestir-se das diversas máscaras com que este
personagem disfarça a sua natureza verdadeira.
O articulista
cuida de elogiar Rossi preliminarmente, considerando que o ator “se houvesse
com maravilhosa habilidade em muitos lances de elevada ordem dramática”
apresentando “uma personificação completa e perfeita do Othello concebido por
Shakespeare”. Mas acusa-lhe o excesso de fúria no momento em que Iago começa a
envenená-lo, aludindo à desonestidade de sua esposa:
Na cena, por exemplo, em que o ardiloso
Iago profere cautelosamente as primeiras indefinidas e quase imperceptíveis
intimações implicando a fidelidade de Desdêmona, o espírito leal, altivo e
majestoso de Othello não sente nem pode sentir os zelos ardentes que lhe
atribui o ator. Pelo contrário, Othello, não confessando nem a si mesmo, as
suspeitas cujo germe lhe acaba de ser implantada na alma, mal as deixa
transparecer; o que é retratado com aquela delicadeza de toque que só
Shakespeare possuía. (...) Podíamos apontar outros senões e belezas, porém
limitamo-nos a censurar o estilo exagerado que leva os atores a mostrarem fogo
onde mais convinha a calma.
Dali em diante o
articulista elogia Rossi: “Na segunda parte desta cena, porém, quando o marido
de Desdêmona se acha já rendido às tormentas do ciúme, o desempenho foi
magnífico. Nada podia ser melhor do que o modo por que o ator recitou o grito
de desespero — o mais belo trecho da peça — em que Othello se despede dos
prazeres, da pompa e da glória da posição que tinha conquistado”.
Engraçadíssimo é o fim do artigo, em que o articulista diz que “estamos
dispostos a perdoar muito a uma companhia que no todo representa tão bem peças
da ordem de Othello, e desejamos
fervorosamente que semelhantes espetáculos sirvam para melhorar o gosto do
público e elevar a arte dramática no Rio de Janeiro”. (13/5/71)
A Vida Fluminense caracteriza jocosamente
a cena do "Villain, be sure thou prove my love
a whore", em que Rossi mantinha o Iago de Giacomo Brizzi sob seu joelho, como um leão atacando um cachorro: "Os espectadores, vendo que não havia ali grade de ferro que separasse a cena da platéia, tremeram como caniços" (A Vida Fluminense, 20/5/71, apud RHINOW, 2007)
a cena do "Villain, be sure thou prove my love
a whore", em que Rossi mantinha o Iago de Giacomo Brizzi sob seu joelho, como um leão atacando um cachorro: "Os espectadores, vendo que não havia ali grade de ferro que separasse a cena da platéia, tremeram como caniços" (A Vida Fluminense, 20/5/71, apud RHINOW, 2007)
Mais uma vez, o teatro não estava super-lotado como todos esperavam. Na comparação, vê-se que Rossi foi chamado à cena de seis a oito vezes, enquanto Emília Adelaide — não obstante tratar-se de sua festa artística — recebeu nada menos do que vinte cortinas, no Antony. A imprensa, entretanto, ainda considerava aquilo meramente o início lento daquilo que viria a ser uma apoteose. E o que ficou da primeira representação de Othello para os brasileiros foram os comentários maravilhados do Mundo da Lua e de Guimarães Junior no Diário do Rio de Janeiro:
Eu sinto-me embaraçado e até medroso
perante o colossal monumento humano, que a Itália nos enviou! Kean foi um
prodígio. Mas o que dizer de Othello? Ainda o público vibra sob a magnética
impressão produzida pela obra selvagem de Shakespeare! O temor que aquele
divino Rossi fez pesar nas nossas almas pasmas não se descreve, nem comenta. É
a vitória da tragédia; a vitória do gênio; a vitória do homem, feito à imagem
de Deus! Othello tocou a linha que marca o impossível nas raias da compreensão
humana! (ML, 13/5/71)
Ernesto Rossi conquistou para sempre a
estupefação pública. Othello é o que há de mais pavoroso e sublime em
interpretação artística. (...) Eu não sei mesmo porque enchi tanto papel para
dar notícia da representação de Othello. Bastava dizer !!!Rossi!!! As
interjeições foram inventadas para ele! (DRJ, 14/5/71)
A terceira peça
apresentada pela companhia de Rossi chamava-se Um Defeito de Educação (“Un vizio di educazione”) e foi escrita especialmente
para o trágico pelo afamado dramaturgo italiano Achille Montignani (1819/1879).
Vencedor do concurso dramático de Turim em 1864 e encenado no sábado, 13 de
maio, o texto, “por intermédio de um estilo simples, claro eloqüente, narra-nos
o escritor um episódio de família, buscado na interminável tese social da
incompatibilidade de gênios e incompatibilidade de educação”. (DRJ, 15/5/71)
Por se tratar de
obra hoje inteiramente esquecida, a sinopse publicada pelo Diário do Rio de Janeiro no dia 15 torna-se valiosa:
A marquesa de Santa Ella (A. Cottin) educa seu filho, Carlos de Santa Ella (Rossi), longe dos bulícios da sociedade onde teme que se perca o espírito do
mancebo, adorado por sua alma generosa e excessivamente maternal. O marquês
Carlos de Santa Ella cresce, pois, à sombra das asas de sua mãe como uma
virgem, alheio às perfídias brilhantes do mundo e aos traquejos da sociedade. É
puro o coração; mas a cabeça é tão pura como ele, isto é: ignorante.
O casamento revela-se à marquesa de Santa
Ella como uma necessidade urgente; casá-lo é providencialmente salvar o filho
das loucuras que a mocidade mais tarde ou cedo forçá-lo-á a tentar. O moço viu
em um baile uma formosa donzela (Celestina
de Paladini) e enamorou-se com o pudor
virginal de sua alma pelo porte e gentileza da elegante. Essa elegante vive á
sombra dos conselhos de seu tio (imagino que seja o “Dr. Sarredo” de Ercole
Cavara), um velho gamenho (frívolo), um solteirão de bom gosto, que esquece da
cor de seus grisalhos cabelos para imaginar unicamente a cor do jaleco de
jockey com que se apresentará no primeiro turf. É um desmiolado, cheio de
cortesias e ridículas pretensões.
O contrário do que exige a marquesa de
Santa Ella à educação de seu filho, aconselha à sobrinha o velho brincalhão. O
baile, a festa, as distrações e o luxo, eis o que atua constantemente no ânimo
fútil da donzela. É essa a mulher com quem se liga o ingênuo marquês de Santa
Ella, e o resultado de tal ligação é fácil de prever. A jovem marquesa
entregava-se de novo, ou antes, continua sua existência leviana e brilhante; o
coração frio a todas as santas expansões íntimas não se volve ao esposo, mas
sim ao louco burburinho dos saraus. O conde de Rivera (Flávio Andó) encontra-a e faz-lhe a côrte; a marquesa aceita o requesto com a
vaidade de uma mulher bonita a quem lisonjeiam os mais poderosos sentimentos.
Carlos de Santa Ella desespera-se com a
frieza da esposa; mas guarda o aparente sossego até a hora em que cai-lhe na
alma a centelha do ciúme e a verdade do que se passa. Procura um meio de
insultar o conde de Rivera e mata-o. Em seguida declara à mulher tudo o que se
há passado; prometendo-lhe um eterno desprezo e forçando-a ao mesmo tempo a
ocultar sob a máscara da alegria o que acontece para que sua mãe, sua mãe que
ele adora, não desconfie, nem suspeite, sequer.
Dessa hora em diante começa o martírio da
jovem marquesa, em cuja alma o amor pelo marido faz o primeiro choque, e Carlos
atira-se à vida tumultuosa da sociedade, para vingar-se e para esquecer. Termina
a peça magnificamente e o marquês, certo do arrependimento e da completa
transformação da esposa, perdoa-a.
Aquele que ainda há pouco fazia tremer
com os seus rugidos de fera personificando o mouro de Veneza, enverga agora uma
casaca e calça uma luva de pelica com todos os ademanes de um homem da melhor
sociedade moderna. Na voz, no gesto, nas entonações, no andar, revela-se
inteira a índole do novo personagem, misto de timidez e de distinção, alma
apaixonada que receia ser compreendida. (AR,
17/5/71)
Baseia-se todo o entrecho, cheio de peripécias cômicas e dramáticas, sobre um ponto único: a luta de uma nobre e robusta alma com o coração e o dever. Rossi foi sublime de sentimento, de entusiasmo, de admirável alcance artístico. A platéia, convulsa de dor e de piedade, acompanhou com lágrimas e aplausos veementes todo o trabalho do mais eminente ator dramático do mundo. O segundo ato é um triunfo como o último é uma glória. (DRJ, 16/5/71)
Havia consenso, porém, de que Rossi, no papel do sargento Guilherme, tirara leite de pedra:
O grande artista compraz-se em lutar com
o impossível; e de um papel vulgar, pálido, monótono, tira ele uma criação
luminosa, resplandecente de paixão e poesia. Pigmalião da arte dramática, o
anjo da inspiração dá a vida às criações do seu gênio. (...) Sombrio, resignado
no 1º ato, no 2º, ao despedir-se da família para ir morrer, o sublime artista
faz vibrar uma a uma todas as cordas do coração do espectador. Não há olhos que
se conservem enxutos ante aqueles beijos convulsivos, ante aquelas carícias
supremas repartidas pela mulher e pelos filhos. Cada gesto, cada olhar, cada
monossílabo contém um poema de angústias, uma eternidade de dores. Os filhos já
lhe saíram dos braços, que ele ainda os beija e acaricia; parece que a alma do
pai já os abraça no mundo das sombras. Ao saber que está passada a hora, e que
o amigo morrerá em seu lugar, que indescritível desespero, que ímpetos
tremendos os daquela consciência para a qual a honra vale mais do que a vida! Tantas
e tais belezas não se analisam. Todas as platéias as admiram. (AR, 17/5/71)
Ferreira de Araújo (1848/1900), que vinha aos poucos se tornando figura das mais importantes de nosso jornalismo, escreveu um longo artigo sobre as performances de Rossi até então. Tomando por base a interpretação do ator na peça contemporânea, de fundo militar, traçou um delicado paralelo entre Rossi e Ristori: "Foi mais uma prova que tivemos da superioridade artística do Sr. Rossi sobre a Sra. Ristori. Na Soror Thereza [de Luigi Camoletti], a Sra. Ristori, que aliás era admirável nesse papel, conservava o andar majestoso, o tom declamatório de que usava na tragédia. Quem conhece no sargento Guilherme o bárbaro Othello? Pode haver maior naturalidade que a da narração do primeiro ato?". Sua análise é das mais interessantes:
A verdade é tanta que o espectador julga assistir à cena que o artista descreve, compreende a razão do procedimento dos dois sargentos, aplaude de coração o que eles fizeram, mas não ousa revoltar-se contra a condenação proferida pelo conselho de guerra, ouvindo o tom de funda convicção com que o Sr. Rossi observa que as leis militares são severas e que foi justa a sentença. (...) O segundo ato, não há descrevê-lo. (...) Aquele homem, que abraça com frenesi mulher e filhos, que se regozija com um momento de júbilo depois de cinco anos de padecimento, deixa ver na imensa alegria da volta a funda mágoa da próxima e eterna separação. O olhar vai até ao fundo das almas como que para saciar-se, porque sabe que é essa a última vez; os beijos longos parecem de alguém que quer guardar nos lábios vestígios deles; e, no meio de tudo isso, o sorriso forçado a impor uma tranqüilidade que o mártir não sente, as palavras entrecortadas do homem que não sabe mentir, o desviar dos olhos quando a esposa amante, que parece adivinhar a horrível verdade, procura interrogá-lo.
Onde há aí coração, por mais insensível que seja, que se não comova ante aquele espetáculo! Sobem involuntariamente as lágrimas aos olhos, e, no entanto, o espectador está tão consubstanciado com o personagem reproduzido pelo Sr. Rossi, que não simpatiza com a ação do aspirante Gustavo, que o quer salvar a todo o transe. A entrada final no terceiro ato é admirável; lê-se-lhe no rosto a satisfação pelo cumprimento do dever, compreende-se a grande fadiga, revelada ainda pela dificuldade com que o braço se dobra para tirar de entre os dentes a cruz de honra. Além destas grandes cenas, em que a situação ajuda o efeito, as outras todas, as que parecem insignificantes, arrebatam o espectador. Citaremos, entre outras coisas admiráveis, o movimento de nobre orgulho com que o condenado à morte veste a farda de capitão, de que estivera injustamente privado durante os cinco anos. Enfim, descrever o que faz o Sr. Rossi é a tarefa que consideramos superior às nossas forças; tivemos apenas em vista consignar aqui um voto de ardente e entusiástica admiração que tributamos ao mais consumado artista que temos conhecido. (O Guarany, 21/5/71)
Celestina de Paladini e o resto do elenco foram fartamente elogiados; a revista A Rabeca não se furtou inclusive de uma comparação lisonjeira, mas algo maldosa: “Nos Dois Sargentos Franceses ainda cabem as honras da glória ao Rossi e à Paladini, que leva vantagem à Emília Adelaide”, mas aparentemente quem roubou a cena foi Leopoldo Vestri, que pela primeira vez apresentou a peça cômica depois do drama. Numa paródia ao Baile de Máscaras de Verdi, o ator conquistou público e crítica: “O Vestri na paródia Un Ballo in Maschera mostrou que além de ser um ator de primeira ordem, era dotado de um verdadeiro talento artístico”. (20/5/71)
Ferreira de Araújo (1848/1900), que vinha aos poucos se tornando figura das mais importantes de nosso jornalismo, escreveu um longo artigo sobre as performances de Rossi até então. Tomando por base a interpretação do ator na peça contemporânea, de fundo militar, traçou um delicado paralelo entre Rossi e Ristori: "Foi mais uma prova que tivemos da superioridade artística do Sr. Rossi sobre a Sra. Ristori. Na Soror Thereza [de Luigi Camoletti], a Sra. Ristori, que aliás era admirável nesse papel, conservava o andar majestoso, o tom declamatório de que usava na tragédia. Quem conhece no sargento Guilherme o bárbaro Othello? Pode haver maior naturalidade que a da narração do primeiro ato?". Sua análise é das mais interessantes:
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José Ferreira de Souza Araújo |
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Adelaide Ristori como Soror Thereza, de Camoletti, em NY. Foto de Napoleon Sarony, 1867 |
Celestina de Paladini e o resto do elenco foram fartamente elogiados; a revista A Rabeca não se furtou inclusive de uma comparação lisonjeira, mas algo maldosa: “Nos Dois Sargentos Franceses ainda cabem as honras da glória ao Rossi e à Paladini, que leva vantagem à Emília Adelaide”, mas aparentemente quem roubou a cena foi Leopoldo Vestri, que pela primeira vez apresentou a peça cômica depois do drama. Numa paródia ao Baile de Máscaras de Verdi, o ator conquistou público e crítica: “O Vestri na paródia Un Ballo in Maschera mostrou que além de ser um ator de primeira ordem, era dotado de um verdadeiro talento artístico”. (20/5/71)
Em seguida aos Dois Sargentos franceses
apresentou-se em cena o Sr. Leopoldo Vestri, talento especial no gênero cômico,
recitando e cantando uma brilhante cena cômica sobre o Ballo in Maschera, ópera
de Verdi. O Sr. Vestri é notável artista e foi recebido com universais e
espontâneas ovações. Cumpre mencionar também a sua bela voz de tenor, o que
concorreu bastante para o sucesso do seu trabalho original e picante. (DRJ,
16/5/71)
Na cena cômica intitulada Un Ballo in
Maschera, paródia da ópera desse nome, fez a sua verdadeira estréia o primeiro
ator cômico da companhia, o Sr. Leopoldo Vestri, que já tão agradável impressão
nos havia deixado no papel do príncipe de Gales do Kean. Tem um mérito real e notável
este artista. (AR, 17/5/71)
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Homenagem a Leopoldo Vestri e seus muitos personagens (ML, 22/4/71) |
Infelizmente, já não era mais possível esconder o óbvio: o teatro estava longe de atingir a lotação. Desde o início de sua temporada brasileira Rossi não tivera uma única casa cheia, ou um único triunfo comparável à Ristori ou Emília Adelaide. O público simplesmente não estava comparecendo às peças, mesmo com a quantidade considerável de anúncios e o absoluto deslumbramento da crítica. Escritores, dramaturgos e a intelectualidade assistiam, horrorizados, a indiferença com que o povo vinha recebendo o grande trágico. Até as companhias ditas “rivais” estavam tomadas por um notório mal-estar diante daquilo; vaidade desenfreada e permanente concorrência eram comuns entre atores e companhias, mas Rossi pairava sobre eles e o fracasso de sua visita ao Brasil constituía uma vergonha para toda a classe teatral.
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A propaganda da Phenix, anunciando um espetáculo em homenagem a Rossi |
A Phenix deu o
pontapé inicial na tentativa de reverter a situação. No dia 15, segunda-feira,
em que o trágico faria uma primeira reprise do Othello, Jacintho Heller inseriu um aviso importante em sua propaganda diária: “Nesta semana grande
festa artística em homenagem a Ernesto Rossi”. Era normal as companhias
realizarem festas para os artistas estrangeiros que vinham em turnê ao país,
mas essa pareceu um tanto prematura. E não era só isso: naquela mesma noite, a
companhia da Phenix e alguns elementos do São Luiz foram assistir Rossi e pela
primeira vez o Lyrico ficou lotado. A extraordinária performance de Rossi,
naquele crescendo que já havia sido apontado pela crítica, maravilhou o público
e provocou as mais violentas e ensurdecedoras ovações. Segundo o Diário do Rio de Janeiro, “os espectadores
compreenderam o artista e o aplauso assumiu as proporções da febre e do
delírio. Do terceiro ato em diante, que é quando aquele prodigioso artista abre
os horizontes aos vôos do seu gênio, o frenesi manifestou-se nas inúmeras e
múltiplas ovações do público eletrizado. O palco ficou literalmente atapetado
de ramos e flores desfolhadas”. (19/5/71)
Terminado o
espetáculo, o público, em êxtase, o chamou inúmeras vezes para mais palmas. Em
meio à beleza inefável daquele momento, subiram ao palco, sem aviso, Emília Adelaide
e Furtado Coelho, que ofereceram “um lindíssimo ramalhete de flores de penas ao
grande artista”. Na seqüência vieram Ismênia dos Santos e todo o elenco da
Phenix, presenteando Rossi com uma luxuosa coroa de louros. Dezenas de outros
ramalhetes foram oferecidos pelos ocupantes dos camarotes mais próximos ao
palco. O público beirava a histeria, de tanta emoção: “A platéia desprendia-se
em bravos e palmas, as senhoras acenavam com os lenços, chapéus até voavam para
o palco e os ramos caíam como chuva torrencial; era um entusiasmo sem limites,
um delirar imenso. (...) Nem há descrever tais ovações; o espírito ofuscado por
semelhantes resplendores recolhe-se, em adorado êxtase, e arremessa-se por aí
além, em busca do desconhecido. A terra é pequena demais para compreender a
grandiosidade que lhe tumultua no íntimo”. (DN,
17/5/71)
De um dos
camarotes foi pedido silêncio; todos os presentes se viraram para o local e
depois de algum esforço conseguiram divisar Rozendo Muniz Barreto (1845/1897),
poeta baiano muito querido. Ele improvisou uma linda poesia em louvor a Rossi —
e que desgraçadamente não encontrei reproduzida em nenhum dos jornais a que
tive acesso — encerrando com chave de ouro e aplausos sinceros essa homenagem
tão merecida. Só que a festa continuou. Público e atores das diferentes
companhias saíram do teatro juntos ao ator, onde os esperava uma banda de
músicos italianos. Empunhando tochas, a multidão reunida acompanhou Rossi até
seu hotel, o “Hotel da Europa”, na rua do Ouvidor, ao som agradável da banda. O
jornalista do Diário de Notícias estava
lá e descreve com fidelidade a comoção que se apoderou de todos:
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Emília Adelaide (O Guarany, 16/4/71) |
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Rozendo Muniz Barreto (SI, 12/8/66) |
Desde o Lyrico até ao hotel da Europa, os
vivas repercutiam soberbamente unânimes. O público acompanhava passo a passo o
prodigioso Prometeu que lhe havia despertado n’alma sentimentos que até hoje
ignorava. (...) E íamos todos presos àquele centro magnético, a cujas douradas
chispas sentíamos efervescer o crânio em “bravos” delirantes e calorosos. Rossi
desde o Lyrico sustentou uma luta renhida: descer do carro e acompanhar a pé os
seus amigos, era o seu desejo. Firmes, porém, em nosso posto, não arredamos um
passo; Rossi à nossa beira, e como nós, a pé, era ficarmos parados diante do
portento, não avançarmos um palmo de terreno; era enchê-lo de abraços, cobri-lo
de beijos, ensurdecê-lo de vivas, matá-lo de entusiasmo.
Ernesto Rossi a todos falava, abraçava,
apertava as mãos; as lágrimas saltavam-lhe dos olhos e a palavra saía-lhe
entrecortada de soluços; a gratidão nunca se exprimiu assim; deslumbrava! (...)
Chegamos, infelizmente, ao nosso destino; o sol vai deixar de resplandecer, no
abismo da nossa mediocridade. Rossi por hoje despede-se de nós. Formamos alas
entre nossos braços, o eterno triunfador ergueu a voz inspirada; em poucas mas
eloqüentíssimas palavras agradeceu ao público fluminense a ovação que acabava
de tributar-lhe. O que se passou então não sei; quando despertei achava-me na
rua do Ouvidor a saudar ainda o herói do maior triunfo que tenho presenciado.
Sinto-me ainda enfebrecido; a pena
percorre o papel trêmula e agitada e torvelinham tantos e encontrados
sentimentos no meu cérebro, que nem sei se escrevo ou estou ainda a vitoriar o
gênio assombrosamente deslumbrante de Ernesto Rossi. Dormir agora é impossível;
envolvido ainda nos perfumes daquela atmosfera de glórias, sinto o espírito
delirante, a alma a querer desprender-se da matéria. O pulso, porém, fatigado,
não há exigir-lhe mais.
(17/5/71)
“O que se passou”
e que o jornalista já não sabia, pela perturbação que lhe causara aquela
jornada, é que Rossi agradeceu com a voz embargada, secando as lágrimas e
erguendo um sonoro “Viva” à nação brasileira. Adelaide Ristori recebeu uma
homenagem semelhante quando esteve no Brasil. Havia, porém, um tratamento muito
mais cerimonioso e distante com a eminente trágica; Rossi era mais acessível e não
se incomodava em cumprimentar a todos, um por um, e ser abraçado e acarinhado
pelo povo.
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Homenagem a Ristori (Vida Fluminense, 28/8/69) |
Essa, por sinal, a razão para a crítica ter tanta adoração por Rossi. Não se tratava
apenas de seu talento; era muito mais do que isso. Ele possuía qualidades raras,
que geralmente andam de braços dados com um talento superior como o dele:
gentileza, humildade e simpatia. Seria perfeitamente compreensível, por
exemplo, que ele respondesse àquela homenagem com polida indiferença, dada a
maneira com que vinha sendo tratado pelo público brasileiro. Ocorria o
contrário. Quanto mais o público o ignorava, mais afinco e dedicação ele
colocava em suas performances. Era um artista consumado com ou sem público. Ele
próprio era seu triunfo, estivesse o teatro cheio ou vazio. E a noite de 15 de
maio lavou a alma da crítica e do reduzido público que o vitoriava todas as
noites. O Diário de Notícias, aliás,
aproveitou para falar de uma vez aquilo que a imprensa toda levava preso à
garganta:
A celebridade européia, que temos a honra
de hospedar em nosso seio, é destes seres privilegiados que, por onde passam,
levam após si as multidões absortas, extáticas de admiração e de respeito. No
entanto o Lyrico, à exceção de hoje, tem estado, por assim dizer, quase vazio.
Somente os verdadeiros amadores do belo, as almas que sabem discernir todos os
mil encantos que esparge, regiamente, o gênio portentoso de Rossi, iam,
reverentes de fé, queimar o incenso da sua admiração no altar do sublime
prodígio; o público conservava-se indiferente, nem a curiosidade lhe excitava
os brios. Mercê de Deus, vai acordando agora; e ninguém mais do que eu acredita
neste bom público, admirador constante e fervoroso de tudo quanto é belo e
grande. o Lyrico ainda há de regurgitar de espectadores, atraídos pelos
brilhantíssimos triunfos que o Sr. Rossi já tem conquistado... não digo bem...
já tem imposto à escolhida sociedade que o admira desde a sua estréia. (17/5/71)
Na quarta-feira,
17 de maio, havia nova performance de Othello
agendada para o Lyrico, às oito da noite. Mas às onze da manhã Rossi adentrava
os portões da residência imperial. Pedro II estava enlutado pela morte da filha
e partiria em viagem internacional no dia 25, mas não queria deixar o Brasil
sem conhecer o trágico italiano. Convidou-o para um almoço regado à cultura. A
imprensa comentou apenas que Rossi “recitará ante à família imperial algumas
passagens de poemas de Dante e Byron” (DN,
17/5/71). Conforme o repertório do italiano isso equivaleria a “cantos da Divina Comédia”, no caso de Dante, e
talvez trechos do Sardanapalo de
Byron, ou poemas do inglês que simplesmente não constavam do repertório. Pedro
II era um profundo conhecedor de poesia e não se furtava de pedir suas
preferidas quando se defrontava com os grandes atores de seu tempo. Prova disso
é que propagandas posteriores da companhia italiana anunciariam Os Últimos Momentos de Cristóvão Colombo
(“Ultimi momenti di Cristoforo Colombo”), de Antonio Gazzoletti (1813/1866) —
ausente no repertório original — como poesia que Rossi “já teve a honra de
recitar perante S. M. o Imperador”.
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Pedro II, em foto da época em que veio Rossi |
A homenagem da
Phenix aconteceu quinta-feira, 18 de maio. O Diário de Notícias daquele dia foi fiel quando anunciou que “não se
poupou esmero e despesa para que esta festa seja deslumbrante”. O teatro estava
rica e lindamente decorado por dentro e por fora. Assim que Rossi desceu de sua
carruagem, começou uma belíssima queima de fogos de artifício — ou, como se
dizia então, “fogos de bengala” ou “fogos cambiantes” — que iluminaram de
diversas cores o céu noturno. Elenco e público vieram recebê-lo e entraram ao
som de uma banda marcial postada no saguão, que tocou o hino “Saudação a
Rossi”, composto especialmente para aquela noite. Como bem assinalou Guimarães Junior,
Rossi foi recebido “como César nos fastos romanos, quando voltava do campo
glorioso e encaminhava-se ao Capitólio”. (DRJ,
21/5/71) Segundo o Jornal da Tarde:
“Ao entrar na sala, que se achava literalmente cheia, o grande artista recebeu
da empresa do Sr. Heller uma dessas manifestações de apreço de que se recordará
com gratidão quando percorrer em sua mente todos os estádios de tantos triunfos
imorredouros. Das galerias choviam versos, flores e pássaros”. (19/5/71)
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Propaganda da homenagem da Phenix a Rossi |
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Guilherme de Aguiar (O Mequetrefe, out. 1892) |
Foi acompanhado
até seu camarote, que ficava próximo ao palco. Nova surpresa; o camarote tinha
seu nome em uma placa e estava “adornado com bandeiras, arcos de folhagem,
troféus, grinaldas de flores no meio das quais se liam os títulos das
principais peças do repertório do grande artista”. (AR, 20/5/71) Rossi acomodou-se confortavelmente com sua família. A
orquestra tocou a “ouvertura” e levantaram-se as cortinas, aparecendo no
proscênio Jacintho Heller, Luiz Carlos Amoedo, Francisco Corrêa Vasques,
Guilherme de Aguiar, Manoel Tavares e Eugênia Câmara, a musa de Castro Alves. Todos recitaram poesias exaltando as glórias da carreira do trágico, que aplaudia com humildade e
emoção, junto ao público, como se não fosse ele mesmo o motivo único daquela
grande festa.
O programa era basicamente
o mesmo da festa artística dedicada a Vasques no mês anterior. Estavam lá O Tipo Brasileiro de França Junior e a
opereta O Fechamento das Portas, de
Augusto de Castro com música de Offenbach; só que ao invés de Silêncio Calado, a “tagarelice em 1 ato”
de Eduardo Garrido, a Phenix optou acertadamente por colocar Vasques
protagonizando o Novo Othelo. A comédia
em um ato, de Joaquim Manoel de Macedo, é uma deliciosa bobagem sobre um ator — Calisto, feito por Vasques — que está obcecado com sua estréia no papel de Othello (de Ducis, diga-se de
passagem) e expõe seus receios ao amigo — Antônio, o ator André Avelino de Amorim — e ao mesmo tempo acredita que está sendo traído pela namorada — Francisca, filha de Antonio, interpretada pela jovem atriz Anna Costa — que, em conversas com a vizinha — Justina, feita por Júlia Heller, esposa de Jacintho Heller — vive se desmanchando em elogios e suspiros por um amor secreto, apenas para que
se descubra, no fim, que ela se referia a um cachorrinho de estimação.
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Francisco Corrêa Vasques |
Foi o grande
momento da noite, pois Vasques aproveitou as explosões de ciúme de Calisto — o
personagem principal, que intercala suas falas com falas do próprio Othello —
para imitar Rossi, que adorou a brincadeira. Segundo A Reforma: “O inteligente ator Vasques, na comédia O Novo Othelo, teve momentos felizes na
imitação de algumas cenas do grande trágico, que o aplaudiu calorosamente”.
(20/5/71) O Diário do Rio de Janeiro concordou:
“O Sr. Vasques, no Novo Othelo,
recebeu vivas demonstrações de apreço público”. (20/5/71) Guimarães Junior
acrescentou: “Vasques esteve soberbo no Novo
Othelo e Rossi, baixando de sua esfera olímpica, ria-se como qualquer
espectador, aplaudindo a paródia de seu monumental trabalho no palco da Phenix
pelo Vasques”. (DRJ, 21/5/71) No
intervalo entre a peça de Macedo e a opereta de Castro, Rossi subiu ao palco e
abraçou todos os atores, ao som de aplausos e “vivas”. Na saída do teatro, a
banda voltou a tocar e Rossi deixou a Phenix com os atores e com o público.
Girândolas soltavam foguetes, e “significava tudo a mais franca demonstração de
entusiasmo ao talento e ao coração do primeiro artista da Itália”. (DRJ, 20/5/71)
Na sexta-feira,
19 de maio, a companhia de Rossi apresentou novamente Os Dois Sargentos Franceses e a paródia de Un Ballo in Maschera com Leopoldo Vestri. No fim do
espetáculo, sem qualquer aviso, Furtado Coelho subiu ao palco. Em cartaz com Antony no dia anterior, não pudera comparecer à festa da Phenix. Fez essa surpresa a Rossi, a quem dirigiu “inspiradíssimas
palavras”, entregando-lhe em seguida uma coroa de louros. É Guimarães Junior quem conta:
O grande arcanjo do drama e da tragédia
respondeu apontando para uma formosa lágrima que lhe borbulhava nos olhos
comovidos:
— Esta saiu do coração! — articulou ele.
Cada noite é um triunfo para Ernesto
Rossi; cada noite um monumento que esse sublime arquiteto levanta em louvor à
arte que o divisou.
Uma semana de
homenagens. Foi uma primeira reação da classe teatral — com a exceção de Germano — à absurda ausência do
público. Guimarães Junior tocou a ferida: “O público ainda não aplaudiu como
deve ao ator ilustre. É preciso justificar-se as ovações feitas à Ristori e
provar-se exuberantemente que o talento é a luz e a luz é una e indivisível!
Quanto a mim, faço ajoelhar minh’alma quando traço o nome do divino Rossi”. (DRJ, 21/5/71)
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Furtado Coelho, em desenho de Rafael Bordallo Pinheiro, 1876 |
Se Guimarães tocou
a ferida, a Semana Ilustrada
escancarou-a. Referindo-se à festa na Phenix, eis o que disse:
A grande festa preparada por alguns
admiradores deste ilustre trágico foi digna de público. E já era tempo. Por uma
inexplicável singularidade, as representações do Rossi não têm sido
corroboradas como deviam ser, o que não parece dar boa idéia de nós. É minha
convicção profunda que nem todos podem gostar do Othello ou do Hamlet; a dieta
literária em que somos geralmente educados parece que nos tira as forças
necessárias para saborear os manjares rudes e esquisitos do grande poeta inglês.
Mas o intérprete? Esse pode ser entendido por todos, ainda falando italiano,
porque o que lhe não entender a língua, entende-se o gesto, o olhar, a voz,
entende as mil linguagens que a natureza lhe deu. E assim é. Cada representação
de Rossi é uma ocasião de triunfo; nos intervalos não há outro assunto de
conversa. Vive-se quatro horas de Rossi. Alguns vivem além desse tempo. (...) E
todavia não se enche o teatro. Por quê? Não foi este mesmo público que aplaudiu
a Ristori? Foi. Não é Rossi um talento de primeira ordem, celebrado no mundo,
aplaudido na capital da França? É. Então por que motivo essa indiferença?
Ó fluminenses, meus inteligentes
patrícios, se o Rossi se for daqui sem fazer nada, perde certamente o dinheiro
que já gastou e algumas ilusões que trazia; mas é quem perde menos. Sabeis o
que perdemos nós? A reputação. Dir-se-á que não entendemos a arte, que estamos
abaixo de compreender o belo, que aplaudimos "O Guarani" por patriotismo, e a
Ristori por ser marquesa. Não quero insistir neste ponto; parecerá que faço
reclame, quando a minha única idéia é salvar os créditos desta cidade
hospitaleira. (SI, 21/5/71)
Algumas das peças levadas por Rossi podiam até ter momentos de humor e comicidade, mas a única verdadeira comédia encenada pelo ator nessa sua primeira temporada brasileira foi Os Namorados (“Gli’Innamoratti”), de Carlo Goldoni, estreada em 1759. A trama gira em torno do casal de namorados Fulgêncio (Rossi) e Eugênia (Paladini), que se ama mas vive às turras por conta de ciúmes. Ele, rico, prefere morrer a perder Eugênia para outro homem, enquanto ela, pobre, se consome de raiva por Fulgêncio ter que pajear a cunhada Clorinda (Giulietta Serafini), esposa de seu irmão que está em outra cidade a negócios. Depois de um almoço no qual Eugênia irrita-se com as atenções de Fulgêncio a Clorinda, há uma série de confusões bem ao estilo de Goldoni e seu alter ego francês, Molière. Segundo a imprensa, o texto era sucesso recorrente de Rossi: “O grande artista tem colhido nessa criação aplausos gerais. É um dos traços característicos do seu múltiplo talento”. (AR, 20/5/71) Na seqüência Leopoldo Vestri protagonizou o “vaudeville” de um ato As Luvas Amarelas — “I guanti gialli”, versão italiana de “Les gants jaunes”, de Jean-François Bayard, traduzida por Clotilde Sacchi — e para que a noite não fosse inteiramente dedicada à comédia, Rossi voltou para recitar Os Últimos Momentos de Cristóvão Colombo.
Algumas das peças levadas por Rossi podiam até ter momentos de humor e comicidade, mas a única verdadeira comédia encenada pelo ator nessa sua primeira temporada brasileira foi Os Namorados (“Gli’Innamoratti”), de Carlo Goldoni, estreada em 1759. A trama gira em torno do casal de namorados Fulgêncio (Rossi) e Eugênia (Paladini), que se ama mas vive às turras por conta de ciúmes. Ele, rico, prefere morrer a perder Eugênia para outro homem, enquanto ela, pobre, se consome de raiva por Fulgêncio ter que pajear a cunhada Clorinda (Giulietta Serafini), esposa de seu irmão que está em outra cidade a negócios. Depois de um almoço no qual Eugênia irrita-se com as atenções de Fulgêncio a Clorinda, há uma série de confusões bem ao estilo de Goldoni e seu alter ego francês, Molière. Segundo a imprensa, o texto era sucesso recorrente de Rossi: “O grande artista tem colhido nessa criação aplausos gerais. É um dos traços característicos do seu múltiplo talento”. (AR, 20/5/71) Na seqüência Leopoldo Vestri protagonizou o “vaudeville” de um ato As Luvas Amarelas — “I guanti gialli”, versão italiana de “Les gants jaunes”, de Jean-François Bayard, traduzida por Clotilde Sacchi — e para que a noite não fosse inteiramente dedicada à comédia, Rossi voltou para recitar Os Últimos Momentos de Cristóvão Colombo.
Os críticos,
sempre tão loquazes em relação a tudo que o italiano encenava, pouco disseram
sobre Os Namorados. Talvez no íntimo se
ressentissem de que o “eminente trágico” descesse de seu pódio olímpico e
tisnasse sua “clâmide grega”, tantas vezes citada, com um pastelão do século
XVIII. Rematado e cretino preconceito. Visceral e naturalista como era na
tragédia, só se pode imaginar como deve ter sido estupendo nas comédias escrachadas e cheias de perspicácia, tanto de Goldoni quanto de Molière. Eis os
dois únicos comentários encontrado sobre essa peça:
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Goldoni |
“Os Namorados”, comédia de Goldoni,
revelou-nos mais uma vez o poder admirável, robusto e gentil do grande trágico
italiano. Passar do jogo ousado, veemente e altivo da tragédia, do aprumo
diplomático e vivo do drama para cair na facécia da comédia, conservando sempre
a mesma força e inteligência, só é dado a um talento excepcional como o de
Ernesto Rossi. “Os Namorados” é uma comédia gentil, graciosa, ardente,
entusiástica. Rossi vale tanto movendo a gargalhada e o epigrama como o ideal
da tragédia clássica. O poder supremo do talento assim se revela; igual no
Olimpo como nas evoluções humanas, Rossi é inquestionavelmente o artista
inexcedível, o primeiro artista mestre. O povo aplaudiu freneticamente a
comédia principal, como as “Luvas Amarelas” em que o Sr. Vestri é
especialíssimo e a cena dramática “Últimos Momentos de Cristóvão Colombo”,
recitada por Ernesto Rossi com sua valorosa energia e sentimento. A Sra.
Paladini trabalhou excelentemente e com grande espírito nesta comédia. Ao Sr.
Cavara não foram injustos os aplausos.
(DRJ, 22/5/71)
O Diário de
Notícias foi mais efusivo:
Bravo Rossi! Bravo Paladini! A
interpretação de teus papéis na comédia “Os Namorados” entusiasmou os espectadores.
Está confirmada, pois, a grande verdade. Sois grandes artistas na tragédia, no
drama e na comédia. Os teus nomes correm já de boca em boca, pronunciados pela
multidão que vos admira. Não se pode desejar mais da realeza da arte. Toda a
gente pasma de vos ver. O gênio, o sublime, o maravilhoso está concentrado em
vós. Fazeis gelar de terror com a facilidade que promoveis a gargalhada. Os
diferentes personagens que exibistes solidificaram a fama do vosso mérito. No “Kean”,
no “Othello”, nos “Dois Sargentos”, no “Defeito de Educação” e nos “Namorados”
conseguistes demonstrar a grandeza do vosso estudo, o sublime do vosso gênio.
Alcançastes a admiração deste povo. Deveis estar satisfeitos. O Brasil aplaude
sempre os talentos, e assente no banquete do progresso, acolhe festivo quantos
demandam suas plagas.
(23/5/71)
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Antonio Gazzoletti |
A Reforma comentou o poema sobre Colombo, dias
depois: “Nessa mesma noite em que se fez admirar na comédia, recitou
ele um poema do escritor italiano Gazzoletti intitulado Os Últimos Momentos de Cristóvão Colombo. Era de ver o seu traje, a
maneira por que estava caracterizado. Era a velhice, majestosa, imponente,
veneranda. Gestos, voz, movimentos, tudo estava abalado pelos anos; só se
conservava forte a alma”. (24/5/71)
Para os dias 22
— segunda — e 24 de maio — quarta — a companhia italiana anunciava a segunda
incursão shakespeariana de Rossi no Brasil: Romeu
e Julieta. O ator estava com 44 anos e, ao contrário do que se pudesse
pensar, fazia pouco que começara a interpretar Romeu. A tragédia dos amantes passara,
a exemplo de tantas outras peças do bardo, pelas péssimas alterações cirúrgicas
do neoclassicismo, dando à luz uma pilha de lamentáveis imitações, e foi só
quando surgiu a tradução do também escritor e político Carlo Rusconi
(1819/1889), que Rossi decidiu montar o texto. O Brasil aguardava ansioso. A
propaganda da peça não primava pela modéstia: “A peça será levada à cena com
todo o luxo devido a uma produção tão esplêndida”. A parte cenográfica deve ter
sido qualquer coisa de espetacular: “O cenário foi expressamente pintado por um
dos mais afamados pintores da Itália”.
Na segunda de
manhã, Rossi compareceu ao velho Largo da Mãe do Bispo, para a benção da pedra
fundamental de uma nova escola. Dias antes fora abordado por Antônio Ferreira Vianna (1833/1903), presidente da Câmara dos Vereadores do Rio, que lhe
solicitou ajuda pecuniária para a construção de “uma escola de instrução
primária para ambos os sexos” na freguesia de São José (atualmente no centro do
Rio). Generoso, Rossi prometeu realizar um espetáculo cuja renda seria
revertida para a edificação da escola. Os vereadores ficaram todos maravilhados e
convidaram o trágico para essa festa:
S. M. o Imperador, S. A. o Sr. Conde
d’Eu, o Sr. bispo diocesano, o Sr. presidente e mais vereadores da Ilma. Câmara
Municipal, muitas pessoas gradas e imenso concurso de povo assistiram a esta
cerimônia, que foi celebrada debaixo de um elegante alpendre ricamente
adornado. O largo todo embandeirado e decorado de flores, globos à veneziana e
festões de louro, apresentava um aspecto lindíssimo. Expostos no lugar da
solenidade, estavam os planos do importante edifício que se vai levantar,
perfeito trabalho arquitetônico dos distintos engenheiros arquitetos Ballariny e
Bosisio, que são também os empresários das obras dessa nova escola. (...) O
insigne trágico, comendador Ernesto Rossi, que generosamente já tinha oferecido
um benefício para a construção desta escola, esteve presente com sua exma. família
à cerimônia. O vulto do príncipe da arte dramática era radiante de prazer,
concorrendo para a instrução do povo fluminense. (DN,
25/5/71)
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A propaganda de Romeu e Julieta no dia 22, e "Oreste" no dia 27, o último com renda revertida para a Caixa de Socorros de D.Pedro V . |
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Anne-Honoré-Joseph Duveyrier, dito "Mélesville" |
Ficou acordado
que a renda de Sullivan, peça de Mélesville
a ser encenada no Lyrico a 2 de junho, seria destinada ao primeiro
educandário da freguesia de São José. Antes disso, porém, no dia 27, já havia outro espetáculo beneficente marcado desde a chegada de Rossi; tratava-se do Oreste, de Alfieri, e desta vez a receita seria revertida para a Caixa de Socorros D. Pedro V, associação filantrópica formada por imigrantes portugueses em 1863, mais ou menos nos mesmos moldes da Beneficência Portuguesa, fundada em 1840.
À noite do dia 22, foi encenada pela primeira vez Romeu e Julieta, com o nome alternativo
de Julieta e Romeu. O teatro podia não estar super-lotado mas tinha, segundo a imprensa, um “bom
número de espectadores”. Assim como foi com Othello ou qualquer outra peça de Shakespeare, era aquele o primeiro contato da poesia do bardo com os brasileiros. Guimarães Junior chegou a comentar que "nós
todos conhecemos Julieta e Romeu como Paulo e Virgínia", traçando paralelo entre a tragédia inglesa e o romance Paul et Virginie, de Bernardin de Saint-Pierre, romance de 1787 sobre jovens que se apaixonam e são separados. Guimarães, porém, esclarece logo em seguida: "Mas
conhecíamos vagamente, através da névoa shakespeariana, como visão ou sonho,
para o qual corria o nosso espírito e o nosso coração palpitante de mocidade e
de amor!" (DRJ, 28/5/71) França Junior ficou extasiado:
O crítico de A Reforma começou seu comentário com
esta observação: “O tradutor italiano, fiel intérprete do grande poeta na
linguagem, seguiu algumas breves alterações que já se haviam feito no drama
original para adequá-lo à cena moderna. Se essas modificações fazem, por
exemplo, passar a cena dos adeuses de Julieta e Romeu na cela de frei Lourenço
em vez de ser no jardim, nada perde com isso a ação, e o formoso diálogo dessa
cena está conservado com fidelidade”. (24/5/71)
Guimarães Junior também fez um pequeno reparo à tradução: "Pena
foi que o tradutor italiano apagasse um dos mais formosos quadros da tragédia
inglesa. A despedida dos dois amantes não se realiza na varanda de mármore, ao
clarão da estrela e depois do canto da cotovia matinal. É na cela de frei
Lourenço, o que parece tirar muito à virgem poesia do ideal de Shakespeare." (DRJ, 28/5/71)
Por um golpe de
sorte chegou até nossos dias o texto utilizados por Rossi, com rubricas e
demais alterações, em uma de suas encenações de Romeu e Julieta. A pesquisadora italiana Lisanna Calvi teve acesso ao documento — que se encontra guardado no prestigioso Gabinetto Scientifico Letterario G. P.
Vieusseux, uma importante e quase bicentenária biblioteca em Florença — e
explica que tais alterações na verdade não são de Carlo Rusconi, mas do próprio
Rossi. O ator gostava do trabalho de Rusconi mas não o considerava fiel ao
original ou suficientemente conciso, talvez por não ter sido escrito para ser
encenado em um teatro, o que demonstra que o tradutor, embora competente e
bem-intencionado, ainda trazia certo ranço de neoclassicismo. Segundo Calvi, Rossi
"resumiu sensivelmente e reajustou a trama, condensando-a numa construção
dramática geralmente mais enxuta, o que apressa o drama na direção de sua
eventual catástrofe". Longe de prejudicar a peça, as alterações de Rossi
estiveram "afinadas com a sensibilidade do século XIX, iniciando, sem
sombra de dúvida, a duradoura sorte do bardo nos palcos italianos".
(Calvi, 2014)
Absorto, melancólico nas primeiras cenas;
pasmo, extático depois que viu Julieta; do 2º ato em diante o grande
artista acumula as belezas com tal profusão que a crítica quase não pode
acompanhá-lo enumerando-as. A cena da declaração no jardim comove e arrebata;
há na voz e nos gestos de Romeu o ardor de uma paixão indômita; as suas
palavras queimam, vem do coração. É uma sedução ouvi-lo e vê-lo. A benção
nupcial na cela de frei Lourenço e tudo que a precede são outras tantas cenas
belas e perfeitas. A provocação de Teobaldo; a morte de Mercúcio; finalmente o
duelo com o mesmo Teobaldo e o seu trágico fim são outras tantas situações de
que o grande artista se apodera com a mais soberana inspiração. A nova cena na
cela de frei Lourenço, primeiro com este só e depois com Julieta; os adeuses
dos dois esposos; tudo é da mais suprema beleza. O 5º ato, porém, oferece
campo mais vasto ao gênio de Rossi. A notícia da suposta morte de Julieta, o
diálogo com o boticário que lhe vende veneno, finalmente a cena dos túmulos,
pode-se dizer que são os lugares sublimes da sua criação.
O comentário
seguinte também se destaca, porque é nova prova da versatilidade de Rossi, e
sua capacidade de interpretar aquilo que quisesse com igual excelência:
Cumpre notar que o lânguido, o amoroso
Romeu nada conserva dos personagens que já vimos, e que fora impossível
reconhecer nesse elegante e esbelto mancebo o simplório Fulgêncio, que, ainda
sábado passado, personificava na comédia de Goldoni, “Os Namorados”, o amante
caprichoso e até certo ponto palerma. Rossi representa a comédia como
representa o drama e a tragédia: a mesma perfeição e a mesma verdade. O papel
de Romeu, porém, presta-se melhor ao seu gênio múltiplo. As expansões do amor
feliz, a cólera, o desespero, o terror, a morte enfim, eis os elementos que ele
carece para ser visto à toda luz, grande como o fizeram a natureza e o estudo,
porque Rossi, como já o disse muitas vezes a crítica européia, e sobretudo a
francesa, é o mais correto dos grandes artistas modernos. Nos seus papéis a
minúcia do estudo pareceria demasiada se pudessem haver demasias no estudo da
natureza e do belo. Rossi atende às menores circunstâncias da cena, da obra, do
personagem que caracteriza.
Nessa última
análise o crítico se refere a um comentário atribuído a Théophile Gautier, que
teria dito a Rossi que seu único defeito era “ser correto demais”. E elogiou a Julieta
de Celestina de Paladini, e o Mercúcio que Leopoldo Vestri interpretou com o
talento que o tornara figura querida do público:
A Sra. Paladini, tão justamente aplaudida
na comédia de Goldoni como o tem sido na tragédia e no drama, fez do papel de
Julieta uma bela criação. No 4º ato, quando bebe o narcótico que a deve reunir
ao seu amado, provocou aplausos gerais. Ao lado de Rossi é um belo triunfo. Entre
os excelentes artistas da companhia dramática italiana há um que cada vez que
aparece em público obtém favor geral. É o Sr. Vestri. Ainda ultimamente o vimos
em dois novos papéis, o mestre de dança da comédia "As Luvas Amarelas", e agora
Mercúcio em Romeu e Julieta. É um artista tão inteligente quanto consciencioso. (24/5/71)
O crítico do Diário de Notícias escreveu sob o que
parecia ser uma emoção tão violenta que beirava a perturbação. Começou dizendo
que “elogiar Ernesto Rossi é a última das loucuras!”
Naquela fronte, deslumbrantemente
laureada, já não há lugar para mais louros; as gemas da glória vêem-se
ofuscadas por tanta luz. Nos vastos horizontes da Arte fulgura como um sol, é o
astro-rei! De que serve, pois, que eu, criatura imersa nas trevas do abismo, vá
turiferar o grande gênio? Tíbia luz de uma lanterna a querer iluminar o sol!
(...) Depois do “Othello”, “Romeu e Julieta”: a paixão selvagem do mouro
abandonou o campo ao amor inocente e puro, ainda que vertiginoso e entusiasta,
dos infelizes adolescentes. Em qual das duas tragédias brilha mais, não serei
eu quem o diga. Rossi é grande em tudo, em tudo resplendem as fulgidas centelhas
do seu gênio!
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Propaganda que já anuncia a peça seguinte: "Francesca de Rimini", de Silvio Pellico |
E à beira dele brilha esplendidamente a
Sra. Paladini. Artista distintíssima, conquista palmo a palmo as calorosas
ovações que a vitoriam sempre. No Romeu e Julieta é com certeza onde mais tem
brilhado o seu peregrino talento. Desde a meiguice faceira e deliciosa do 1º ato e o diálogo no jardim, até quando diz a frei Lourenço que vem
confessar-se, cobrindo a face com a ponta do véu e radiando um olhar, misto de
candura e divina maliciazinha; desde o monólogo magistralmente interpretado no
fim do 4º ato, até a cena desesperada, descomunalmente horrível, em que arranca
o punhal do morto amante e o crava no íntimo do seio com aquele contentamento
que só a suprema desesperação pode liberalizar; é de uma fidelidade tal que o
espectador esquece-se de si mesmo e, presa de um sofrimento dilacerante,
acredita na realidade da ficção. Os aplausos frenéticos e unanimes que a
saudaram provam não só a verdade do meu dizer, como também quanto é querido e
apreciado do público fluminense o seu grande talento, e, o que mais é, a sua
notável modéstia.
(25/5/71)
O crítico da Semana Ilustrada também confessou sua incapacidade de comentar o trabalho de Rossi: "Imagine quem não foi à Julieta e Romeu, imagine o que será Rossi no difícil e brilhante papel do namorado de Verona. É sem dúvida este um de seus papéis capitais, e bastava para diploma do seu gênio e da sua arte. (...) Pela nossa parte damos apenas esta notícia: falece-nos a competência para julgar a reprodução da obra imortal do poeta inglês. E não aplaudimos só o grande trágico; agradecemos-lhe o ter proporcionado ao nosso público o conhecimento de Shakespeare". (28/5/71)
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Ernesto Rossi e Celestina de Paladini em ilustração da Semana Ilustrada (4/6/71) mostrando o ato III, cena V de "Romeu e Julieta" |
A cereja no bolo foi posta por Guimarães Junior, que não se furtou de ressaltar a aparência jovem do ator:
Ernesto Rossi, tão maravilhoso é no "Othello", arrancando com as fúrias do ciúme horrendo e selvagem do sanguinário mouro, como no "Romeu e Julieta", folheando o poema das lágrimas e dos suspiros, dos devaneios e da morte, que a língua humana determinou chamar amor e que não é senão o vôo da alma à imortalidade e a Deus! Romeu e Rossi encarnaram-se em um só tipo; no gesto e no olhar; no porte suave e distinto, na voz, ora misericordiosa e pura, ora cheia de tempestades e lágrimas! (...) Ernesto Rossi veio explicar-nos o sonho e dar corpo à visão que entrevíamos nos delirantes momentos do entusiasmo e de poesia! Ele parece ter feito um contrato com a natureza para remoçá-lo de vinte anos, quando enverga o negro gibão de Romeu e deixa beijar-lhe a fronte pálida a pluma flutuante. Como é moço, como é belo, e, sobretudo, como é verdadeiro nas suas expansões de amor, de ventura e de alma desvairada! (DRJ, 28/5/71)
Na quinta-feira, 25 de maio, Rossi saiu cedo para acompanhar a partida de Pedro II, que fazia sua primeira viagem internacional na qualidade de Imperador. Guimarães Junior estava lá e, sempre transbordando lirismo, descreveu a multidão reunida para despedir-se do Douro, paquete inglês que levantou ferros às 9 da manhã: “Fazia um nevoeiro profundo e triste, mais profundo ainda pelo fumo das salvas das fortalezas e navios de guerra nacionais e estrangeiros que saudavam os augustos viajantes no momento da despedida!”
Embarcações de todo feitio e tamanho,
repletas de povo, concorreram à melancólica e augusta entrevista. Dezessete
vapores, a bordo da maior parte dos quais retumbavam os sons vibrantes da
música marcial, acompanharam o Douro até a barra. (...) Os olhos imperiais em
vão buscavam no derradeiro instante descobrir o querido porto da pátria, tal
era a neblina formada pela fumaça dos canhões que os cortejavam na hora dos
extremos adeuses! Quando os vapores, conduzindo milhares de pessoas do povo,
passavam em frente ao Douro, os vivas e as saudações à família imperial
ergueram-se de todas as bocas. O imperador, de fronte descoberta, acenava com o
lenço, e a imperatriz baixava por vezes a cabeça pálida e angustiada para
ocultar lágrimas que todos viam e que umedeciam os olhos do mais sombrio
espectador de tão triste espetáculo. (...) A natureza parecia participar da
melancolia geral, e a atmosfera obscurecida tecia um véu de luto e de lágrimas
que desenrolava-se dos montes e vinha cobrir as ondas!
A baía do Rio de Janeiro é um prodígio de
poesia; mas naquela manhã tornou-se uma maravilha de glória. Os marinheiros nas
vergas de todos os navios mercantes e de guerra, nacionais e estrangeiros,
agitavam o boné e cruzavam “vivas’ entusiásticos. Uma barca ferry conduzindo os
italianos, à cuja frente campeava o fulgurante perfil de Ernesto Rossi, chegou
até Santa Cruz acompanhando o Douro. E enquanto o paquete desaparecia ao longe
por meio do nevoeiro, o lenço alvo da imperatriz, pendida à amurada do vapor,
ondulava ainda como a asa de uma garça fugitiva ou de um anjo que desaparece! Não
pode deixar de ter uma viagem mil vezes feliz quem tantas bênçãos e tristezas
recebe na hora da despedida! Esqueceram-se ódios políticos e desavenças de
partidos. Cada qual saudou com respeito e veneração o primeiro de todos os
brasileiros, e o mais magnânimo de todos os cidadãos do império! (DRJ,
28/5/71)
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Dante e Virgílio observam Francesca e Paolo no inferno. Quadro de Ary Scheffer, 1854 |
Francesca de Polenta
(1255/1285) foi uma nobre de Ravenna (nordeste da Itália). Por questões
políticas, seu pai, Guido, ofereceu-a em casamento a um nobre de Rimini,
Giovanni Malatesta. Ela, entretanto, se apaixonou pelo cunhado Paolo e ambos
acabaram assassinados por Giovanni quando foi descoberto esse amor adulterino.
Dante Alighieri, contemporâneo de Francesca e talvez até mesmo seu conhecido,
dedicou a ela o Canto V de sua Divina
Comédia, no qual ele e Virgílio entram no segundo círculo do Inferno, onde
sofrem aqueles que sucumbiram às tentações da carne. Encontram Francesca e
Paolo levados por uma ventania que não pára jamais, e, instada por Dante a contar a história de seu infortúnio, ela revela que os dois
acabaram se envolvendo depois de lerem, juntos, sobre o romance proibido de
Lancelot e Guinevere. Boccaccio adicionou novos elementos (reais ou fictícios)
à história e quase 600 anos se passaram até que o escritor Silvio Pellico
(1789/1854) retirasse Francesca do esquecimento.
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Paolo beija Francesca depois da lerem sobre o romance de Lancelot e Guinevere. Quadros de William Dyce, 1837 |
Curioso é que
nenhum dos dramaturgos ingleses isabelinos ou elizabetanos, ou mesmo a pomposa
francesada seiscentista tivesse se interessado por ela, porque seu episódio no
Inferno de Dante, mais o apêndice de Boccaccio (como por exemplo o fato dela
ter se casado com o belíssimo Paolo e só no dia seguinte ser informada de que
seu marido de fato era o horroroso e deformado cunhado, Giovanni) são
matéria-prima da melhor qualidade para um bom dramaturgo. Até onde pude
constatar, Pellico foi o primeiro. Sua Francesca
da Rimini — ou de Rimini, tanto
faz — foi publicada em 1814 e encenada em 1818. Em 1816 veio o poema dramático
de Leigh Hunt (The Story of Rimini) e
até o fim do século XIX houve pelo menos vinte adaptações, seja no teatro, em
poesia, ópera ou sinfonia.
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Silvio Pellico |
A peça de
Pellico gira em torno de quatro personagens: Francesca, seu pai, Guido, seu
marido, Lanciotto — espécie de amálgama entre “Gianciotto”, apelido de
Giovanni, e “Lancillotto”, Lancelot em italiano — e o cunhado Paolo. O casal
Francesca e Lanciotto passa por uma grave crise porque ela descobre que o seu
próprio irmão foi morto em combate por ninguém menos do que seu cunhado Paolo.
Aos poucos vai ficando claro que Francesca e Paolo eram apaixonados antes dela
se casar com Lanciotto. A chegada de Paolo à Rimini provoca o desespero de
Francesca e a paixão dos dois é reacesa a cada encontro fortuito, que ela
procura evitar a todo custo. Paolo ainda guarda consigo a cópia do livro sobre
Lancelot, que os dois liam juntos e sobre os quais ambos choraram, jurando amor
eterno. Desnecessário dizer que Lanciotto descobrirá tudo e matará a mulher e o
irmão. Tentará se matar em seguida e será impedido pelo próprio Paolo, levando
o público a um paroxismo de emoção e choro.
Francesca de Rimini se tornou uma das peças mais famosas e
encenadas do século XIX. Estava no repertório de Ristori, de Tommaso Salvini,
de Rossi e de qualquer ator ou companhia que se prezasse. No Brasil, Rossi encarnou
Paolo, Paladini foi Francesca, Giacomo Brizzi deu vida a Lanciotto, Ercole
Cavara interpretou Guido e Emma Della Setta foi um pajem. Para desanuviar o
clima de tragédia, o programa prometia Leopoldo Vestri na seqüência com a comédia
de um ato A Carta Perdida (“La
Lettera Perduta”, 1830), de Luigi Ploner (1801/1856). Tudo parecia augurar um
sucesso; Os Namorados agradara, Romeu e Julieta fora uma apoteose, a
peça de Pellico era um dramalhão bem ao gosto de todos. Resultado: nem metade
da casa foi vendida.
Mais uma vez, um
fiasco que cobriu o Rio de Janeiro de vergonha. A imprensa estava tão
constrangida com o comportamento do público que até os elogios a Rossi vieram
algo embaraçados: “No 3º ato, não só ele como a Sra. Paladini ergueram-se tanto
e tanto aos olhos dos espectadores, que os bravos e as palmas estrugiram
calorosas e frenéticas desde a platéia até a quarta ordem de camarotes. Na
realidade, a cena em que eles, Paolo e Francesa, descobrem a imensidade de seu
oculto e criminoso amor, está escrita com tanto sentimento e maestria e foi
interpretada com tanta arte e inspiração, que era impossível deixar de aplaudir
quem tanto nos deliciava, comovendo-nos. A Sra. Paladini, que desde a sua
estréia é devidamente apreciada, firmou, mais solidamente ainda, a sua
reputação de atriz distinta. (...) O Sr. Cavara e Brizzi, desempenharam
notavelmente, como artistas que são, os seus papéis”. (DN, 27/5/71)

Não havia clima
para elogios. Era preciso desabafar, de uma vez por todas. Gritar,
publicamente, que o Brasil não era o Rio de Janeiro e o fluminense não representava
o brasileiro; que sabíamos o que era talento e cultura, e só Deus poderia
explicar a razão para o maior ator do mundo estar sendo tão maltratado. O Mundo da Lua foi o primeiro, e o fez sem
quaisquer rodeios, recordando a maneira calorosa com que foram recebidos outros
grandes cartazes do Lyrico:
Ernesto Rossi representou o Paulo da “Francesca
de Rimini” tendo na platéia cem cadeiras ocupadas apenas e nas quatro ordens
uns dez camarotes talvez! Não sei como se possa desculpar a frieza e
indiferentismo do público em presença do primeiro ator dramático do mundo! (...)
Sucessos sobre sucessos; glórias sobre glórias; criações sublimes sobre
sublimes produções dos grandes mestres; nada conseguiu encher o vasto templo da
arte, onde se batia no calor do pugilato para se conquistar uma cadeira durante
as noites da Ristori, da (Rosine) Stoltz, da (Giulia) Gasc, de Hermann (prestidigitador), dos campanólogos e da (Adelina) Patti! Passaria de moda o gosto do público fluminense pelo belo e pelo
verdadeiro? Quem sabe!
O fim é
clarividente, quando fala do “juízo da posteridade” e lista as atrizes do Alcazar:
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Rosine Stoltz, por Felix Nadar |
Se continua vazio o teatro Lyrico
Fluminense, como será possível justificar-se as ovações que por ali tanto
retumbavam outrora, e que contas prestará este público à posteridade quando o
juízo da imparcial crítica lhe puser adiante dos olhos o Alcazar Lyrico e o
Lyrico Fluminense, o busto imponente de Rossi e a carinha risonha, sarcástica e
traidora das Aimées, Gandons, Vallotes, Risettes e Lovatos, comandadas por
Offenbach e pelo Sr. Arnaud?!
(26/5/71)
A Reforma começa melancolicamente
anunciando para a segunda-feira, dia 29 de maio, o que se supõe ser a última
performance de Othello, por Rossi: “A
grandiosa e sublime visão desaparecerá, e para nunca mais voltar. Segundo
ouvimos, e de fonte limpa, a companhia dramática italiana retira-se brevemente”.
Em outras palavras, a recepção brasileira fora tão fria que a os italianos haviam
decidido encurtar em quase dois terços a turnê. O comentário
seguinte é valioso e segue o açoitamento do Alcazar: “Quando Rossi visitou
Paris em 1866 grande parte da imprensa diária festejou a sua chegada como uma
reação salutar contra a Venus aux
carottes” — canção cômica de um vaudeville de Henri Thièry chamado Les contributions indirectes, de 1865 — “contra
Theresa” — ou Mlle. Thérèsa, na
verdade Emma Valadon (1837/1913), atriz popularíssima do Alcazar francês — “e
todo o repertório offenbachiano”. O articulista segue, brilhante, falando sobre
os benefícios da ida de Rossi à França, e daquilo que poderia ter acontecido
aqui, fosse outra a reação de nosso público. Seu comentário assusta, de tão atual:
Shakespeare interpretado por um grande
artista podia iniciar a restauração das leis do bom gosto, e reagir contra a
decadência moral de um povo aviltado pelo regime de Napoleão III. O que era
verdade para a grande capital da civilização, é-o muito mais para nós; aqui o
culto das letras e de tudo que eleva o coração e o espírito ainda parece
luxuosa superfluidade mesmo aos que se dizem homens de estado, e, à míngua de
bons preceitos e de bons exemplos, deixa desenvolver-se o sensualismo grosseiro
e o mau gosto literário.
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Emma Valadon, dita Thérèsa |
Ernesto Rossi interpretando Shakespeare,
Corneille, Molière, Alfieri, Goldoni, Pellico, Garret, Alexandre Dumas e Victor
Hugo era a voz do progresso com a sua mais esplêndida forma. O teatro, não
cessaremos de repeti-lo, é mais do que um passatempo. É uma escola; e pelo
estado do seu teatro se julga da civilização de um povo. Como se acha o que
chamamos nosso? A visita de Rossi deveria marcar uma época de reforma, de
atividade, de admiração pelo belo que nos vinha revelar o grande artista. Infelizmente,
ao que parece, será estéril, porque não há reagir contra a indiferença apática,
contra o sono da indolência e da rotina. (28/5/71)
Guimarães Junior
afasta o foco do Alcazar e faz sua queixa particular:
Na Francesca de Rimini, a última peça que
ele nos deu até ontem, prosseguiu esplêndido o artista nas suas incomparáveis
vitórias! Eu não sei o que dizer realmente do gênio de Ernesto Rossi e não me
resta tempo para fazer um vocabulário expresso, em que lhe cante o nome com
propriedade e justiça! Amanhã repete-se o Othello e o público... A propósito do
público! Quando virá o dia em que se aprecie nesta terra alguma coisa sem ser
por moda? Estou a ver que há de chegar a hora em que o sol seja mal recebido e
que caia em moda apenas a... lua! O teatro Lyrico cada noite está mais vazio e
cada noite Rossi é maior e mais esplêndido!
De que serve a imprensa? Os jornais
proclamam o gênio do primeiro artista italiano, e o público em geral recebe a
notícia como peixe de abril! E há quem me assegure que a Ristori foi vitoriada
pelo seu talento artístico e pela glória de que vinha precedido o seu nome! Se
isto continua assim, quando Ernesto Rossi voltar à Itália e alguém perguntar-lhe:
— Que tal é a platéia fluminense?
O grande artista responderá encolhendo os
ombros, como se tratasse do Japão:
— Não a conheço; nunca a vi. (DRJ,
28/5/71)
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A imprensa perde a calma diante da indiferença do público com a temporada de Rossi (SI, 4/6/71) |
Mais violenta
foi a Semana Ilustrada, em artigo intitulado
“Ernesto Rossi e o primeiro público do mundo”. O texto começa mostrando que a
propalada cultura do brasileiro é uma farsa, já que “não são disputadas” as
publicações literárias do editor Garnier e da Tipografia Nacional; o povo brasileiro só
vai ao teatro “em alguma noite de festa nacional, juntando o aliciante das
novidades feitas nos móveis ou nas decorações, e excitando a curiosidade com
algum hino e com outros estímulos. (...) Fora disso, nem o amor da arte, nem o
patriotismo, têm o poder de arrancar espectadores nem leitores do seio do
primeiro público do mundo”. Em seguida fulmina, enfiando não só o dedo mas a
mão inteira na ferida: “A verdade, a verdade triste e inegável, de notória
evidência, é que a arte dramática não é honrada no Rio de Janeiro, onde, no
Teatro Lyrico Fluminense, brilha pela ausência o primeiro público do mundo”.
Segundo o
jornalista, haveria um movimento por parte de certa crítica no sentido de Rossi
não apresentar senão os “clássicos”. Era preciso que Rossi eliminasse “do seu
repertório os dramas cuja ação seja violenta ou inverossímil, que aspire a
exprimir as dores morais mais do que as físicas”. O jornalista ironiza: “Que
artigos tão bem escritos se hão dedicado a este objeto! Que lições de estética
tão eruditas e tão belas! Que estímulos tão diretos e tão eficazes! Se Rossi
tem ouvido tudo isto, deve estar dizendo de si consigo: ‘Bem se vê que neste
Rio de Janeiro o gosto está muito apurado; a crítica é muito fina, o público
muito delicado, e não é possível pôr em cena coisa alguma inverossímil,
violenta ou que peque por qualquer conceito contra as regras mais severas da
arte’”.
À primeira vista parece ser coisa de uma indesejável e embolorada “patrulha
neoclassicista”. Mas à medida em que o jornalista vai desmontando cada aspecto
dessa tendência, demonstra-se, por fim, que em sua concepção, a culpa pelo fracasso
de Rossi no Brasil se devia ao emburrecimento do público por conta da sub-cultura disseminada pelo Alcazar e suas "estrelas filantes" (cadentes), que é como Arnaud denominava seu elenco:
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Rossi, litografia de J. Donon, Madri |
Vejamos agora em que ponto nos achamos. A
tragédia foi abandonada por pouco realista. O drama romântico perdeu também o
favor do público, porque propendia demasiado para as emoções violentas, e punha
quase exclusivamente o seu esmero na manifestação das dores físicas e das
paixões desenfreadas, ou mais exato, porque o público deu em dizer, e ainda
mais em crer, que vai ao teatro para rir e não para chorar. A comédia histórica
foi também sacrificada ao intolerante monstro do realismo. A de costumes não
logrou satisfazer por muito tempo a atenção do vulgo. E o que foi então que
sucedeu? Isto: sobre a ruína de tudo ergueu-se, original, imitado, traduzido e
parodiado, o festivo e ruidoso Offenbach, o rei do cancan. Coisas do primeiro
público do mundo! A tragédia é posposta ao drama; o drama à comédia, esta ao cancan.
E aí ficamos. Será possível ir mais além? Fica alguma coisa por fazer depois de
ter metido Carlos Magno num trem de caminho de ferro de terceira classe, de
fazê-lo bailar com as estrelas filantes?
Os que se aborrecem com o discretear de
Julieta e Romeu, de Paolo e Francesca de Rimini, podem ir onde ouvirão
qualquer coisa, menos coisas discretas; os que censuravam acremente o excesso
de lirismo, ocasião têm para saciar-se da prosa; os que temem-se de que a
sensibilidade lhes seja excitada até o pranto, estão no caso de desfazerem-se
em riso, se isso lhes apraz. (...) Em conclusão: o cancan alça o pé até a
altura do rosto do primeiro público do mundo, fazendo-o passar triunfalmente
sobre a arte em caricatura, sobre a história em caricatura, sobre a geografia
em caricatura, sobre a lógica em caricatura, sobre a gramática em caricatura,
sobre o senso comum em caricatura e sobre a moral em caricatura. Rossi, depõe a
tua coroa de príncipe da arte dramática, ganha ao som dos aplausos das
estúpidas platéias da bárbara Europa! Pouco, bem pouco, quase nada mereces ao
primeiro público do mundo. (28/5/71)
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As "estrelas filantes" do Alcazar... (SI, 4/6/71) |
Rossi continuava
pairando sobre essa polêmica. No dia 26 foi tranqüilo prestigiar a Filarmônica do
Rio de Janeiro e no sábado, dia 27, preparou-se para a encenação de Oreste, em benefício da Caixa de
Socorros D. Pedro V.
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Vittorio Alfieri, em quadro de François Xavier Fabre, 1797 |
Vittorio Alfieri
(1749/1803) foi o maior expoente do neoclassicismo italiano. Revisitou diversas
tragédias greco-romanas, valorizando o estilo declamatório de Ésquilo e Sêneca,
colocando a poesia em primeiro lugar e o jogo teatral em segundo. Oreste retoma um episódio posterior à
guerra de Tróia, que Ésquilo dividiu em três partes, a célebre Oréstia: durante os longos anos em que Agamemnon
passou em combate, sua esposa Clitemnestra tornou-se amante de Egisto. Finda a
guerra, o rei voltou a Argos e foi assassinado pelo amante da esposa, com sua
cumplicidade. Orestes, filho de Agamemnon, vai com seu amigo Pílades ao palácio
usurpado por Egisto a fim de vingar o pai. Nesse momento se inicia a tragédia
de Alfieri, que se concentra em Orestes (Rossi), Pílades (Rigatti), Egisto
(Brizzi), Clitemnestra (A. Cottin) e Electra (Paladini), a irmã de Orestes que partilha
do mesmo ideal de vingança do irmão. O encontro dos dois, aliás, perante a
tumba do pai, é um dos pontos altos da peça.
Orestes e
Pílades tentam enganar Egisto fazendo-se passar por mensageiros estrangeiros
que vêm informar sobre a morte de Orestes. Egisto descobre o ardil e prende os
dois. O povo, porém, é informado que Orestes voltou e invade o palácio para
soltá-lo, já que ele é o verdadeiro herdeiro do trono de Agamemnon. Trava-se
uma luta e Orestes mata Egisto e Clitemnestra. A peça termina com ele sendo
perseguido pelas Eumênides, seres sobrenaturais que puniam aqueles que cometiam
pecados como o parricídio. Na Oréstia,
essa peça equivale a As Coéforas,
segunda parte da trilogia. Alfieri, porém, escreveu apenas Agamennone e Oreste. Na
terceira parte escrita por Ésquilo, As
Eumênides, Orestes é julgado no areópago ateniense e perdoado graças ao
voto da deusa Minerva.
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O encontro de Electra e Orestes diante da tumba do pai |
Seja pelo fato
de que o espetáculo tinha um fundo beneficente, seja pela carraspana que o
público levou da imprensa, nessa noite o Lyrico “regurgitava de espectadores”. Segundo
o Diário de Notícias, foi mais uma
aula magna de interpretação dada por Rossi: “O Sr. Rossi desde a cena do
reconhecimento da irmã, no 2º ato, até à da loucura, no 5º, deslumbrou os
espectadores. O prodígio da cena ergueu-se de tal forma que a inspiração
suplantou a arte. Teve frases, monólogos, reticências, que não podiam, nem
eram, filhas do estudo. Eram sim, com certeza, o irradiar de uma inspiração
latente, genial”. (DN, 30/5/71) O Diário do Rio de Janeiro concordou: “Depois
do ciúme mortuário de Othello, do amor suave e imenso de Romeu e do implacável
amor de Paulo, Ernesto Rossi desvendou-nos os mistérios da vingança com todos
os seus desvarios e horrores”. O mesmo articulista, por sinal, faz comentário
bastante lúcido sobre a teatralidade na obra de Alfieri:
“Orestes” é o remorso e a vingança:
remorso na alma materna; vingança insaciável no coração robusto e nobre do
filho, ante quem clama eternamente a sombra desolada de Agamemnon, assassinado
pelo adúltero sentimento de Clitemnestra e de Egisto. Alfieri abordou o tema com a maior
proficiência artística e sentimento poético. As cinco figuras que representam na
tragédia — Orestes, Pílades, Clitemnestra, Electra e Egisto — estão mais
esculpidas que desenhadas ou descritas. A obra de Alfieri é um bronze, onde se
exaltam como no baixo relevo dos templos antigos a idéia histórica e o símbolo
da poesia.
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Orestes perseguido pelas Eumênides, no quadro "O remorso de Orestes", de William Bourguereau, 1862 |
Também
impressionou a todos a cena em que Orestes se debate, perseguido pelas fúrias,
visíveis apenas para ele:
O 4º e 5º atos de Orestes são admiráveis
na extensão da palavra, e as derradeiras cenas do último quadro assombram o
espectador. Na luta com as sombras e as fúrias que o perseguem, depois que ele
dá morte à sua mãe por suas próprias mãos, Orestes-Rossi de tal maneira
manifesta o gênio da arte nas terríveis explosões do terror e da alucinação
que, conforme diz um notável crítico italiano, o espectador vê a olho nu as fúrias
sangrentas debaterem-se no palco arremessando-se contra o Orestes artístico. (DRJ,
29/5/71)
Todas as cenas dos paços de Argos, desde
a entrada do filho de Agamemnon até a catástrofe, formam um conjunto de belezas
tais que é mais fácil admirá-las do que descrevê-las. A tudo, porém, sobreleva
a cena final, em que, cumprido o oráculo, e vingador dos manes paternos no
próprio sangue de sua mãe, Orestes, perseguido pelas fúrias infernais,
encarnado na poderosa individualidade do grande ator, torna uma realidade o
mais sublime ideal, remontando a alturas só franqueadas ao gênio. É o caso de
repetir com alguém: Sófocles precisou pôr em cena as Eumênides, Rossi as faz
supor. O espectador as vê, e no semblante, no gesto, nos cabelos de Ernesto
Rossi está impresso o terror que passa dentro em pouco à sala toda, abala-a,
agita-a e, ao cair o pano, arranca uma dessas esplendidas ovações como a da
noite do dia 27, em que o público não se cansa de vitoriar tamanhas conquistas
da arte. (A República, 30/5/71)
Celestina de
Paladini, como sempre, tocou em cheio o coração do público e da crítica: “A
Sra. Celestinas de Paladini esteve cheia de expressão e de inspirados
sentimentos em várias cenas da tragédia, e a cena final do 4º ato conquistou os
merecidos aplausos públicos”. (DRJ,
29/5/71) Leopoldo Vestri também foi elogiado na comédia Um cantante Cômico sem Contrato. O Diário de Notícias, entretanto, atreveu-se a criticar a performance
dos outros atores:
A Sra. Paladini, como sempre, interpretou
brilhantemente o seu papel. A Sra. Cottin e o Sr. Brizzi desempenharam
regularmente os que lhes foram confiados. O Sr. Rigatti, no de Pílades, teve
alguns momentos felizes, é moço ainda e se estudar, com o talento que tem, pode
ainda alcançar bastantes triunfos. Concluindo, não podemos deixar de aplaudir
mais uma vez a Sra. Paladini. Não se deve esquecer a jovem atriz, que, dirigida
pelas sábias lições do seu laureado mestre, pode aspirar a todos os triunfos. (30/5/71)
No fim do espetáculo,
três membros da diretoria da Caixa de Socorros subiram ao palco e entregaram a Rossi
um diploma de benfeitor da instituição. O público, que participara o tempo todo
de maneira positiva e entusiástica, aplaudiu generosamente e encheu o palco de
ramalhetes de flores. Uma banda instalada no saguão animou os intervalos e
tocou no fim, também. O Diário de Notícias descreveu bem o sentimento coletivo:
“Rossi é o herói de todas as noites. Cada vez que honra as tábuas do proscênio
com a sua presença, deixa cinzeladas, em nosso espírito, as recordações
brilhantes dos esplendores do seu gênio”. (30/5/71)
Seguindo essa
lua de mel de Rossi com os portugueses, a Beneficência Portuguesa ofereceu-lhe
uma recepção no dia seguinte, domingo, 28 de maio. As festas da associação eram
sempre muito agradáveis, mas a presença de Rossi transformou o morno convescote
em um concorridíssimo evento social, com direito a um ministro de Portugal, ministros
do Império, empresários, jornalistas do Jornal
do Comércio, Diário do Rio de Janeiro
e Diário de Notícias e os dois
representantes mais célebres de Portugal na classe artística: Furtado Coelho e Emília
Adelaide. Depois da missa, houve um lauto banquete, com vários brindes:
A primeira saúde foi feita pelo Sr.
Conselheiro Mathias de Carvalho à S. M. o Imperador; a segunda pelo Sr.
Comendador Martins ao trágico Rossi; a terceira pelo Sr. Furtado Coelho aos
Srs. Ministros do Império, de Portugal e a Rossi; a quarta, aos Srs. Drs.
Castro e Almeida; a quinta, pelo Sr. ministro do Império à colônia portuguesa e
particularmente á iniciativa dos que tinham erguido aquele grande monumento de
patriotismo e dedicação, fechando os brindes, o trágico Rossi, que em sentido
discurso, ofereceu os seus serviços artísticos para, em um espetáculo em favor
da beneficência, demonstrar o quanto preza e compartilha do sentimento de
generosidade de todos os portugueses. (...) O Sr. Rossi foi o alvo da atenção
dos convivas, que se retiraram penhorados pelo cavalheirismo da ilustre
diretoria. (DN, 30/5/71)
O mês terminou
com uma quarta representação de Othello
na segunda-feira, dia 29, e a terceira de Julieta
e Romeu na quarta, dia 31. O público apareceu em massa. “Felizmente o bom
público fluminense, acordando da profunda indiferença em que estava imerso,
enchia o vasto recinto do teatro Lyrico”. (DN,
31/5/71) Seria uma tendência ou uma empolgação momentânea?
Repetiu-se o Othello e repetiu-se Julieta
e Romeu. O teatro encheu-se. E dou com tanto prazer essa notícia quanto deve
ser o orgulho d’um povo, que vai se elevando até a altura de Ernesto Rossi,
compreendendo-o. Finalmente o grande trágico não levará daqui maus diplomas do
nosso espírito e da nossa admiração pelo belo e pela inteligência! O que dizer
dos outros teatros? Sei lá! O incomparável ator italiano é uma espécie de
Saturno da arte que devora... todos os seus filhos! (ML, 3/6/71)
A Companhia
Italiana resolveu não encurtar a temporada e ficar até o fim.
FIM da segunda parte
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BIBLIOGRAFIA
- A Comédia Social
- A Rabeca
- A Vida Fluminense
- O Guarany
- O Mequetrefe
- O Mundo da Lua (ML)
- Semana Ilustrada (SI)
- A Reforma (AR)
- A República
- Diário de Notícias (DN)
- Diário do Rio de Janeiro (DRJ)
- Jornal da Tarde (JT)
- Jornal de Recife (JR)
- Biblioteca Nacional Digital
- CALVI, Lisanna. Shakespeare in 19th-century Italy : Ernesto Rossi’s Romeo and Juliet. 2014
- GOMES, Eugênio. Shakespeare no Brasil. MEC, 1961.
- RHINOW, Daniela. Visões de Otelo na cena e na literatura dramática nacional do século XIX (Vols. I e II). São Paulo, USP, 2007
- Agradecimento a Reinaldo Elias
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