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Acima: Ralph Richardson, Laurence Olivier e Jack Lemmon. Abaixo, Bethel Leslie, Katharine Hepburn e Constance Cummings. |
A Versão de
Sidney Lumet
O pai de Sidney Lumet era ator então sua ligação com o teatro vinha de muito cedo. O próprio Lumet também tentou sua sorte no palco, em uma pequena companhia de Nova York no fim da década de 40, e tão logo se tornou diretor de cinema e televisão, muitos foram os filmes que ele dirigiu cujos roteiros vinham de peças do mundo inteiro. Entre TV e cinema ele dirigiu, no fim da década de 50, desde 12 Angry Men de Reginald Rose e L'école des femmes, de Molière, até uma adaptação de Orpheus Descending, de Tenessee Williams, com o nome de The Fugitive Kind, com Marlon Brando. Foi aos poucos aprendendo a dirigir teatro em cinema, trabalhando em programas como o “Kraft Television Theatre” e no “The DuPont Show of the Month”. Em 1960, integrando o time de diretores da prestigiosa “The Play of the Week”, série de teatro filmado da CBS, tocou a Lumet dirigir uma adaptação de The Iceman Cometh. Foi sua primeira experiência dirigindo uma peça de O’Neill e também a primeira vez em que dirigiu Jason Robards, chamado para repetir na televisão sua performance de Hickey, tão elogiada na Broadway. O programa durou três horas e meia e é, hoje, um clássico. Robards, aliás, emplacava um sucesso atrás do outro e acabava de receber um Tony de Melhor Ator por The Disenchanted, de Budd Schulberg, direção de David Pressman, onde contracenou com a linda e talentosa Rosemary Harris.
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Jason na montagem televisiva de Lumet para "Iceman Cometh", 1960 (Fonte) |
Fosse por uma escolha artística ou porque já estava acostumado com isso, o diretor optou pelo preto e branco. A decisão pode ser questionada, mas funciona bem nesse universo emocional tão denso que O’Neill condensou em um único dia. Na música acertou chamando o jovem André Previn, judeu alemão cuja família fora para os Estados Unidos fugindo da ascensão nazista. Com pouco mais de trinta anos o rapaz já ganhara dois Oscars pelos arranjos musicais de trilhas de Frederic Lowe (Gigi) e George Gershwin (Porgy and Bess) e já recebera uma indicação por trilha original (Pepe, com o comediante Cantinflas). O piano contundente e por vezes dissonante de Previn se coadunou muito bem com as imagens e é tão dramático que não serve apenas para separar os atos e cenas; parece um entreato real, composto para a peça.
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Lumet no set de LDJ (Foto de Erich Hartmann) |
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Kate e Lumet no set de LDJ (Foto de Bob Henriques) |
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Ralph Richardson em LDJ |
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Ralph em LDJ (Foto de Erich Hartmann) |
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James conta a história de Booth, em LDJ |
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Dean Stockwell e Ralph em LDJ |
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"The fault, dear Brutus, is not in our stars, but in ourselves that we are underlings"... |
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Foto de Erich Hartmann mostrando que inicialmente a idéia era que Ralph usasse um topetezinho. A idéia foi abolida. |
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Kate em LDJ. Foto de Dennis Stock |
Kate é também quem melhor retrata a confusão mental de Mary no diálogo do 3º ato com Cathleen, em que O'Neill a descreve "as if in spirit she was released to become again (...) the naive, happy, chattering schoolgirl of her convent day". Ela parece, mesmo, uma menina divertida e descontraída nos gestos, e no contraste com sua aparência real, descabelada, rindo — o sorriso lindo de Kate — se arrastando pelo chão, ela choca e dá significado à fala de Cathleen: If I didn't know better, I'd think you'd a drop taken.
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Kate em LDJ. Foto de Dennis Stock |
O que não significa que aqui e ali não veremos um pouco de overacting. Na cena I do 2º ato ela promete a Edmund que vai se cuidar, e empenha sua “sagrada palavra de honra”. A rubrica de O’Neill descreve Mary como “frightenedly” no momento da promessa. Kate dá a fala de maneira cínica, debochada. Não vi razão para isso. No terceiro ato também há exagero quando Edmund lhe diz que terá que ir para um sanatório. Kate o estapeia, grita “Não!” e o abraça. Interessante. Mas não emociona porque é ensaiado demais.
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Kate em LDJ. Foto de Dennis Stock |
No início da cena II a criação transcende a rubrica: Kate pede licença para subir por um momento e arrumar seu cabelo. Sabendo o que vai acontecer, Ralph tenta impedir, ela lhe diz que se desconfia tanto pode subir junto com ela e ele lhe diz: As if that could do any good! You’d only postpone it. And I’m not your jailor. This insn’t a prison. Ela responde, amaríssima: No. I know you can’t help thinking it’s a home. A câmera focaliza Ralph em close. Ele apenas reage. Cerra os olhos, arrasado e se deixa cair na cadeira. É a vez de Kate reagir. E ela reage sentindo tal horror ao que acabou de dizer que por pouco não solta um grito. Sua reação é a de quem matou o próprio marido sem perceber, e se deu conta disso em seguida. Diz I’m sorry, dear. I don’t mean to be bitter. It’s not your fault, desviando o olhar e acenando levemente com uma das mãos.
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"I don't mean to be bitter"...
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Kate reage como alguém que recebeu uma punhalada no estômago mas não consegue gritar. Desfigurada, destruída, ela responde, com a voz trêmula, tentando não acusar o golpe: I have to get tooth powder... and toilet soap... and cold cream... Vê-se que Ralph fecha os olhos, em contraplano, chorando. Kate, fantástica, desaba na hora: James, you mustn't remember! You mustn't humiliate me so! Ralph, chorando silenciosamente, descomprime, como uma panela de pressão sob a água. Cheio de vergonha ele sussurra, dolorosamente: I'm sorry... Forgive me, Mary!... Um espetáculo de talento.
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"I'm sorry... Forgive me, Mary!"... Ralph e Kate: gênios. |
E o efeito contrário se observa, no que tange às rubricas. Quando ela fala sobre o que vai comprar, O’Neill aponta o caminho: “Tries to ignore this”, referindo-se à explosão de James. Constance Cummings seguiu a rubrica fielmente e a cena perdeu muito do pathos. Sobretudo porque a explosão de Olivier veio vários decibéis acima da de Ralph. Já Kate carregou à décima potência o patético da resposta de Mary e criou uma cena magistral. É, aliás, um dos momentos em que nos permitimos imaginar o que teria sido LDJ com Olivier e Kate. Possivelmente o maior tour de force de todos os tempos.
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Kate e Ralph |
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"He is a sad, bewildered, broken old man"... |
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Dean Stockwell, em foto promocional de LDJ |
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Jason, em foto promocional de LDJ |
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O elenco principal de LDJ, 1962 |
Nos Estados Unidos a coisa foi bem menos festiva. LDJ recebeu uma única indicação para o Globo de Ouro: Kate, para Melhor Atriz, e perdeu para Geraldine Page, protagonista de Sweet Bird of Youth, dirigido por Richard Brooks e baseado em peça de Tennessee Williams. O Oscar foi igualmente frio: uma indicação, novamente para Kate, e ela mais uma vez perdeu, só que desta vez para Anne Bancroft, por The Miracle Worker, direção de Arthur Penn, baseado na peça de William Gibson sobre Hellen Keller.
Jason Robards, Colleen Dewhurst
e José Quintero
e José Quintero
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Playbill de "Hughie", 1964 |
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Colleen Dewhurst e Ingrid Bergman: "More Stately Mansions", 1967 |
Em 1972 John Frankenheimer decidiu fazer uma versão cinematográfica de The Iceman Cometh (a versão de Lumet foi televisiva). Começou a escalar o elenco, chamou atores da montagem original, atores que já haviam trabalhado em peças de O’Neill, como Fredric March e Robert Ryan e, é claro, chamou Jason Robards para reprisar o papel de Hickey, agora com a experiência da idade. Desgraçadamente, Robards teve um acidente horroroso de automóvel que o deixou desfigurado e fora de combate por meses, o que obrigou Frankenheimer a chamar Lee Marvin. Lee era um bom ator e fez muito bem o seu papel. Mas não era Robards. O filme não causou a sensação que se esperaria. Foi o último filme do grande Fredric March.
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Jason e Colleen, "A Moon for the misbegotten", 1973 |
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Jason e Colleen, "A Moon for the mibegotten", 1975 |
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Cartaz da temporada em Washington |
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Em pé: Kevin Conway e Michael Moriarty. Sentados: Zoe Caldwell e Jason Robards, 1976 |
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Zoe Caldwell e Michael Morarty em Washington. Foto de Richard Braaten |
Curiosamente, foram os outros três protagonistas que deixaram impressões mais profundas. Zoe Caldwell, desesperada e com os cabelos desgrenhados, transformou em realidade aquele triste fantasma de esposa; Michael Moriarty esteve magnificamente vulnerável como o filho mais novo, e Kevin Conway tem uma voz afiada e uma arrogância soberba, embora apropriadamente vacilante para sua presença como o filho mais velho.
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"A Touch of the Poet" no Kennedy Center |
O ano de 1977 também viu o fim de um ciclo de tragédias que marcou a família do dramaturgo: Shane, o segundo filho de O’Neill, se atirou do quarto andar do prédio onde morava, em Nova York, no dia 22 de junho, e morreu um dia depois. Ele estava com 57 anos e teve uma vida marcada pelo alcoolismo, pelo vício em drogas, por não ter tido jamais uma carreira e pela total ausência de uma figura paterna. Era o mais problemático dos filhos de O’Neill e esta não foi a primeira vez que ele tentou o suicídio. Shane era Jamie multiplicado por dez. Olhando friamente, a conclusão é que Eugene O’Neill foi um pai tão péssimo ou pior do que James. Imaginava-se que ele fosse tentar poupar seus filhos do inferno que ele próprio viveu com a família, procurando estar o mais presente possível, provendo todo o suporte emocional que eles pudessem precisar. O que se viu foi o contrário; sem um pingo de vocação (ou vontade) para a paternidade, ele pura e simplesmente se ausentou e deixou os filhos ao léu, sob a influência de mães jovens e despreparadas. Salta aos olhos, neste caso, o destino de Oona, irmã mais nova de Shane (eram ambos filhos de Agnes Boulton), que conseguiu escapar a tempo da absoluta incúria de seus pais e viveu uma existência tranqüila e doméstica ao lado de Chaplin.
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Chaplin, Oona e seus oito filhos, no fim da década de 60 |
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Jason nos remakes de "Hughie" (1984) e "Iceman" (1985) |
A década de 80 foi de revivals. Em 1984 a peça Hughie foi remontada com Robards e Jack Dodson reprisando os personagens da montagem de Quintero, vinte anos antes, para a série televisiva "American Playhouse". A direção de TV foi de Terry Hughes e o programa foi ao ar em maio de 1984. No ano seguinte José Quintero decidiu montar The Iceman Cometh com Jason Robards mais uma vez. A peça estreou no Lunt-Fontanne Theatre de NY em setembro de 1985 e ficou em cartaz até dezembro. A crítica foi muito positiva e destacou, como não podia deixar de ser, a profunda experiência de Robards e sua identidade inarredável tanto com Hickey quanto com Jamie, que certamente foi uma das inspirações de O’Neill na criação do personagem.
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Jason e Colleen em LDJ, 1988 |
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Colleen (Mary) e Jason (James), LDJ, 1988 |
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Theatre World: Campbell Scott, Jamey Sheridan, Colleen Dewgurst e Jason Robards |
A senhorita Dewhurst tem, certamente, uma cortante dimensão trágica. Quando é deixada sozinha em sua casa mixuruca de verão para contemplar sua solidão, o pânico e o anseio em seu rosto dolorido parecem tão enevoados que vemos o caos interno que a leva às drogas. No entanto, esta Mary, por toda sua beleza etérea e cabelos prateados e maternos, não é a "Mãe Terra Dewhurst" [epíteto associado a Colleen, por sua personalidade forte e pela generosidade com que cuidava das pessoas e negligenciava a si própria], ela é uma assassina, sempre torcendo a faca em velhas feridas familiares.
É preciso lembrar que a descrição de O’Neill para sua mãe — além de ressaltar sua beleza e um nervosismo constante — afirma que ela tem “uma voz suave e atraente”, e que sua “qualidade mais cativante é o charme simples, natural, da jovialidade de uma menina tímida de convento”.
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Colleen (Mary) e seu filho Campbell (Edmund) |
Lembro-me com muito carinho. (...) Eu não pretendia trabalhar com minha mãe. Quando a oportunidade surgiu, fiz alguns testes e pensei: "Não quero fazer isto". No sentido de que quem quer trabalhar com seus pais por perto? Mas evidentemente aceitei porque estava pensando, de forma egoísta, "quando terei novamente a oportunidade de interpretar Edmund?" Que grande papel! Que linda peça. E trabalhar com minha mãe foi melhor do que eu imaginava. Ela era muito divertida, e era boa em seu papel, o que ninguém realmente esperava. As pessoas pensam em Mary como sendo frágil, viciada e essa coisa toda, mas ela foi notável nessa personagem.
Foi a última colaboração dos três. Dewhurst morreu em agosto de 1991. José Quintero morreu em 26 de fevereiro de 1999 e Jason Robards morreu em 26 de dezembro de 2000. Das montagens originais norte-americanas de LDJ, somente Dean Stockwell está vivo e trabalhando, aos 81 anos. Bradford Dillman morreu no dia 16 de janeiro (onze dias após o início desta pesquisa), aos 87 anos.
A Versão de Laurence Olivier
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Poster original da montagem de Olivier e Michael Blakemore, quando de sua passagem pelo Old Vic, em agosto de 1972. Foto e arte de Zoë Dominic. (Fonte) |
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Tynan e Olivier, 1975 |
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Michael Blakemore |
His face has begun to break down but he is still remarkably good looking — a big, finely shaped head, a handsome profile, deep-set light-brown eyes. His grey hair is thin with a bald spot like a monk's tonsure. The stamp of his profession is unmistakably on him. Not that he indulges in any of the deliberate temperamental posturings of the stage star. He is by nature and preference a simple, unpretentious man (...) but the actor shows in all his unconscious habits of speech, movement and gesture. These have the quality of belonging to a studied technique. His voice is remarkably fine, resonant and flexible, and he takes great pride in it.
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Constance na juventude: deslumbrante |
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"One of the most beautiful girls you could ever see. She knew it, too".
Constance Cummings, no início dos anos 30
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Constance, em foto contemporânea da montagem de LDJ |
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Quilley, em foto da década de 60 |
Ronald Pickup tinha 31 anos (mas aparentava bem menos), estava no National há algum tempo, vinha se destacando por bons trabalhos e em termos físicos era magro e franzino o bastante para interpretar Edmund. Reunido o elenco para uma primeira leitura, o resultado foi inesperadamente ruim. E a nota dissonante, para o basbaque de todos, era Olivier. O mestre não tinha apenas a reputação de melhor ator, mais talentoso e mais cheio de recursos; ele era também considerado o melhor profissional, o mais preparado fisicamente, aquele que estava no teatro antes de todos, concentrado e trazendo nos primeiros encontros o texto decorado, na ponta da língua e decidido sobre a linha interpretativa a ser seguida nos ensaios. Não foi bem o que ocorreu. Segundo Michael Blakemore:
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Ronald Pickup, em foto contemporânea da montagem de LDJ |
A descrição é brilhante. E vai de encontro a dois problemas enfrentados por Olivier; um desde sempre e outro mais recente. O mais comum era sua obsessão quase esquizofrênica com sotaques. Sua necessidade de perfeccionismo no processo de verbalização dos mais variados acentos e suas sutilezas o obrigava a trabalhos exaustivos de pesquisa linguística e etimológica. Em suas memórias ele declara, sem rebuços: “Total nitidez de alocução é uma paixão de toda a minha vida”. Isso valia para ele próprio — que colecionou sotaques do mundo inteiro durante sua carreira, desde o russo até o alemão, passando pelo árabe e pelo francês — e também para montagens das quais sequer participava, mas que eram do National. Gabava-se do sotaque escocês perfeito falado em Armstrong’s last goodnight, montado pela companhia em 65; o irlandês impecável em Juno and the Peacock, no ano seguinte; o inglês “cromwelliano” em The Crucible, e etc. O problema é que nem sempre isso levava à perfeição e em muitos casos ele acabava exagerando.
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Olivier nos ensaios de LDJ. Foto de Zoë Dominic |
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Quilley e Pickup nos ensaios de LDJ. Foto de Zoë Dominic |
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Olivier em cena de LDJ. Foto de Zoë Dominic (Até onde sei, todas as fotos do espetáculo, na seqüência, são de Zoë) |
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O James de Olivier |
A grande surpresa é Constance Cummings, que passa pela transformação da gentil presença materna da abertura para a espectral viciada em morfina do último ato com uma autoridade e intensidade espiritual que faz o papel merecer completamente sua posição central. Mas, embora subjugado, o Tyrone de Olivier é incomparável no fascínio técnico e pessoal — pessoal, porque James Tyrone (aliás James O'Neill) era um ator com o tipo de carreira que Olivier passou sua vida evitando: um talento jovem e forte destruído por anos de aprisionamento em um único papel. (...) Vemos Tyrone em um estágio no qual ele está perfeitamente ciente de sua auto-destruição; e o abatimento que se instala em Olivier desde o início — seu corpo curvado com um terno largo, sua boca rachada em uma linha média para criar um queixo recuado — expressam uma certeza de derrota que vai muito além dos assuntos familiares. Há toques do 'velho canastrão', como quando ele afetadamente entoa algumas falas de Próspero e se volta para seu filho em apelo nulo para aplausos.
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Olivier e Cummings |
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Ronald Pickup, Olivier (de costas), Denis Quilley e Constance Cummings, Londres, 1971 |
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Olivier e Cummings |
O Jamie de Denis Quilley tem uma camada excedente de cafajeste edwardiano, mas no fim acaba nivelando mortalmente com seu pai como outro sardônico velho canastrão. Tanto Olivier quanto o Sr. Quilley fizeram "The Entertainer", de John Osborne, e por vezes era como ver dois Archie Rice em um combate mano a mano.
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A deliciosa caricatura de Bill Hewison para a velha Punch Magazine de janeiro de 1972. Olivier, Cummings, Quilley e Pickup |
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Programa da peça |
O National estava salvo. Contudo, por várias razões, sendo que nenhuma tinha a ver com competência gerencial ou talento artístico, Olivier não conseguia se dar bem com os engravatados da empresa; a companhia recebia subsídio do governo para existir e o preço para dar ao público aquelas maravilhas era ter que lidar com um grupo asqueroso de burocratas; um bando de filhos da puta com títulos de nobreza que nunca assistira uma peça na vida. Olivier foi avisado formalmente que deixaria a direção do National em março de 1972. Ficou para fazer mais duas peças como ator: Saturday, Sunday, Monday, de Eduardo De Filippo, com direção de Franco Zeffirelli, e The Party, de Trevor Griffiths, com direção de John Dexter. Finda a temporada desta última, Olivier deu mais um exemplo: teve a grandeza e a humildade de saber parar. Ciente de que a idade vinha chegando, a saúde andava dando sustos e ele há anos gozava do status de maior ator do século XX, o mestre se aposentou dos palcos. No início de 1974 ele dirigiu Joan Plowright em Eden End, de J. B. Priestley, ainda no National (uma espécie de presente de despedida de Peter Hall, seu substituto na direção da companhia) e se concentrou em TV e cinema, que eram menos cansativos, mais lucrativos e traziam infinitamente menos problemas do que a gerência de uma companhia ou de um teatro.

Os créditos
iniciais reservam uma surpresa: ao som da “Grand Valse Brillante” de Chopin os
personagens são apresentados; a Cathleen de Maureen Lipman limpa os retratos de
cada um deles e quando os coloca de volta sobre o piano, há um close nos
retratos, o nome dos personagens, e a imagem adquire movimento. Assim vemos
Jamie ao piano, Edmund na biblioteca, Mary lendo na varanda e James aparece
caracterizado como Edmond Dantès. A foto real existe e é desnecessário dizer
que Olivier ficou parecidíssimo.
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Olivier, na abertura de LDJ, e James |
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Olivier e Cummings |
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O James Tyrone de Olivier |
Nas
primeiras falas de Olivier o
sotaque do ator grita. Vamos vendo cada um de seus estudos de prosódia. Quando
James diz I've kept my appetite and I've
the digestion of a young man of twenty, if I am sixty-five, o “sixty-five”
é cantado, no estilo “americanês”. Na frase I'll bet they're cooking
up some new scheme to touch the old man, “old man” é cantado do mesmo
jeito. Pouco depois, quando diz It's on
me. I'll bet that much. It's always on the old man, “old man” é novamente
cantado. Sim, os americanos fazem isso. Mas quando Olivier repete o mesmo expediente três vezes em uma única cena, torna-se artificial.
Por alguma razão a fala sobre “o primeiro charuto depois do café da manhã”, que nos introduz à figura de McGuire, é mudada e James apenas avisa Mary que ele ligará na hora do almoço. Eles têm o diálogo em que Mary desiste de tentar provar que James não é um “astuto especulador imobiliário”, e James conclui dizendo let's not argue about business this early in the morning. O “early”, dito como “érrli”, puxa o erre e tem um acento agudo no “e”. É provavelmente como se pronuncia em algum lugar estudado por Olivier. Teatralmente é um ladrão de cena horrível.
Por alguma razão a fala sobre “o primeiro charuto depois do café da manhã”, que nos introduz à figura de McGuire, é mudada e James apenas avisa Mary que ele ligará na hora do almoço. Eles têm o diálogo em que Mary desiste de tentar provar que James não é um “astuto especulador imobiliário”, e James conclui dizendo let's not argue about business this early in the morning. O “early”, dito como “érrli”, puxa o erre e tem um acento agudo no “e”. É provavelmente como se pronuncia em algum lugar estudado por Olivier. Teatralmente é um ladrão de cena horrível.
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O Edmund de Ronald Pickup |
Esse esforço
todo de Olivier em busca de autenticidade é muito louvável, mas é também muito
inútil. No 4º ato James deixa isso claro: I
got rid of an irish brogue you could cut
with a knife, ou seja, ele se livrou de um carregadíssimo sotaque irlandês.
Na época em que se desenrola LDJ, portanto, ele já não tem mais esse sotaque.
Não havia, efetivamente, nenhuma necessidade de transformá-lo em um cavalo de
batalha. Olivier poderia (e deveria) ter optado por uma interpretação naturalista, mas até quando tenta fazer isso a impressão é de que o sotaque o impede, além de parecer mudar o tom de voz de Olivier, tornando-o gutural. Nesse sentido, muito mais inteligente foi Lumet, que deixou Ralph
Richardson falar com seu sotaque britânico normal. E se alguém questionasse,
era só lembrar que qualquer ator shakespeariano daquela época (e inclusive
hoje) optaria por desenvolver um sotaque que estivesse mais próximo da língua
do bardo do que do “americanês”. Enfim, como já foi dito, Olivier é o único que
afeta excessivamente o seu inglês, no filme. Os outros atores o fazem com total
naturalidade.
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Olivier: um James bonachão |
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Quilley e Olivier: duelo de Archies |
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Denis Quilley |
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O Jamie de Denis Quilley |
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Pickup e Olivier |
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"But for the love of God, why couldn't you have the strength to keep on?"... |
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Pickup e Olivier |
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"Mary!"... Olivier, Quilley, Cummings e Pickup |
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"Stop what?"... |
E há também,
é preciso que se diga, cenas em que a bonomia de Olivier funciona como válvula
de escape temporária, arejando o clima constantemente sombrio com uma outra
ocasião de hilariedade que não descaracteriza o texto. No 3º ato Constance e
Olivier são o contrário de Ralph e Kate. A tônica da relação dos dois é o grande amor entre eles, e não a mágoa. Acredito que essa noção é um verdadeiro bullseye da montagem e está muito mais próxima de O'Neill do que qualquer outra.
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Amor e humor bem-vindos |
Aqui lamenta-se que a parte seguinte do diálogo tenha sido cortada, na qual Mary conta que sua mãe profetizara que ela seria uma péssima esposa. Ela pergunta a James: But she was mistaken, wasn’t she, James? I haven’t been such a bad wife, have I? E ele responde I’m not complaining, Mary. E ela então arremata: At least, I’ve loved you dearly, and done the best I could; under the circumstances. Gostaria de ter visto Olivier e Constance nessa cena. Seria o lado B para a interpretação de Ralph e Kate.
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Constance Cummings |
A Mary de
Constance Cummings foi um gosto adquirido. Sua performance não me disse nada na
primeira vez que vi o filme. Foi necessário revê-lo algumas vezes para perceber
as múltiplas sutilezas de seu trabalho, que é excepcional. Em primeiro lugar, é
a atriz que mais respeita as rubricas de O’Neill. O autor foi de uma precisão
absoluta nas reações e nas emoções que desejava transmitir com cada fala e
Constance foi tão fiel quanto possível ao que o autor desejava. Seu trabalho de
composição é admirável. Logo no 1º ato, quando James e Jamie vão trabalhar na
sebe, Edmund se encontra com Mary. Em um único minuto ela o recebe com “a
motherly smile”, depois “almost resentfully” e muda de atitude “hastily”. O sorriso materno vem quando ela o vê e diz there you are; Edmund lhe diz que não queria participar de nenhuma discussão por estar se sentindo péssimo. Ela responde, irritada, Oh, I’m sure you don’t feel half as badly as you make out! You’re such a baby! You like to get us worried so we’ll make a fuss over you! Quando Edmund faz menção de deixá-la ela muda completamente, e, quase se desculpando, diz I’m only teasing, dear. I know how miserably uncomfortable you must be. Kate Hepburn o faz com uma única entonação de brincadeira descontraída. Está “teasing” o tempo todo. Constance o faz da maneira correta, ou seja, totalmente bipolar: em um único minuto, doce, estúpida e preocupada. A atriz descascou esse
abacaxi nos mínimos detalhes. e assim por todo o espetáculo. Como também levou a
tremedeira das mãos de Mary a um ponto em que ela fica com as mãos contraídas
praticamente a peça inteira.
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Constance: reagindo a Olivier |
Constance é
também a única das três atrizes aqui analisadas que invade o terreno do vício e
interpreta um momento de fissura da personagem, por mais uma dose de morfina. Há
detalhes interessantes, como a cena em que ela descasca maçãs compulsivamente.
Ilustram bem o tormento de Mary. Ao mesmo tempo ela é a mais charmosa de todas
as Marys. Com mais de 60 anos ela continuava lindíssima e mantinha intacto seu
charme, a coquetterie que compartilha
com a personagem. Isso a ajudou muito na cena II do 2º ato, em que persegue
James e não o deixa subir para se trocar. É momento em que ela o alfineta com a
possibilidade dele ficar bêbado, nos bares do centro da cidade, e Olivier
responde com ultraje. O jogo entre os dois é delicioso porque ela acusa e
justifica, bate e assopra, e cada vez que o faz tem um sorriso, um piscar de
olhos, um muxoxo diferente para irritá-lo ainda mais. E suas acusações ganham
um contorno menos humilhante e mais imaturo, mais infantil, e isso é coerente
com o comportamento de Mary durante uma crise. Enquanto essa cena não se torna
abertamente trágica, salta aos olhos o contraste entre a inquietação de James e a
gay coquetterie da Mary de Constance.
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Constance: aos 61 anos, uma Mary atraente |
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Mary: coquetterie |
E quando a
cena se torna trágica Constance esgrime com Olivier utilizando todas as suas
forças. É nesse quesito que reside uma de minhas poucas restrições à
performance de Constance: ela é uma boa atriz dramática mas não é uma atriz
trágica. Falta-lhe essa habilidade, com a qual Kate contava, entre seus
múltiplos talentos. Em falas como I’ve
never been able to forgive him for that, referindo-se a Jamie e à morte de
Eugene; ou I never should have born
Edmund, ou quando diz, desesperada, ao próprio Edmund, but I can’t help it, you’ve got me so worried, ela aumenta
vigorosamente o tom dramático, mas não alcança o trágico. Há o tremor do desespero em sua voz, mas falta-lhe uma voz mais encorpada e flexível, e sobretudo, faltam-lhe as lágrimas de Kate. O choro de Constance é seco
e isso não passa despercebido em um texto tão denso quanto LDJ. Mesmo assim ela
tem uma performance rica e corajosa.
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Pickup e Quilley: excelentes |
Ronald
Pickup é superior a Dean Stockwell e deixa uma lembrança positiva como Edmund. Bastante expressivo, ele
recita suas falas de uma forma curiosa. Nos monólogos, e mesmo em falas mais curtas
ele cadencia as frases; no 1º ato ele faz isso com Mary: Please, Mama! I’m trying to help... Because it’s bad for you to forget... The right way is to remember... So
you’ll always be on your guard... You
know what’s happened before. Na cena II do 2º ato, mesma coisa: Well, I’ll hope... She’s just started... It
can’t have got a hold on her yet... She
can still stop... I’m going to talk
to her. No 4º ato, em sua explosão com James ele cadencia e aumenta de
intensidade o fim das frases. Não chega a ser um defeito; é apenas estilo, e por vezes, reconhecível. E em geral, funciona bem. Já sua tosse de tuberculoso, que lembra alguém tentando regurgitar um caroço de azeitona, deixa a desejar. Denis Quilley tem sua grande cena do 4º ato lamentavelmente diminuída. Edição televisiva, certamente. Corta-se muito do diálogo com Edmund e cortam-se três importantes falas dadas ao pai: a citação de Dante Gabriel Rosseti (Look in my face. My name is Might-Have-Been; I am also called No More, Too Late, Farewell), o comentário sobre a montagem de The Bells of Corneville (opereta francesa de Robert Planquette, Louis Clairville e Charles Gabet, baseada na peça do último; libreto em inglês de Henry Farnie e Robert Reece), na qual um dos personagens era um fazendeiro miserável chamado Gaspard, com quem Jamie compara seu pai constantemente; e a fala acintosa sobre Booth (I claim Edwin Booth never saw the day when he could give as good a performance as a trained seal). Uma pena.
Denis Quilley é um caso raro; ele era um ótimo ator, faz muito bem o seu papel mas — minha opinião — seu rosto tem formas tão incomuns e tão únicas, e sua voz é tão grave e marcante, que gritam por um papel característico; algo mais elaborado, um vilão, um estrangeiro, algo de época, uma fábula, uma tragédia grega, Shakespeare, um musical, o que for, só não o papel de uma pessoa regular e normal. Não é à toa que ele já estava escalado para trabalhar em Guys and Dolls, o musical norte-americano que Olivier sonhava montar e estrelar mas que acabou não acontecendo, por conta de seus problemas de saúde. A primeira opção de Olivier, aliás, para o papel de Jamie, era Albert Finney, mas ele não pôde aceitar, provavelmente por compromissos já assumidos no cinema. Tremo só de imaginar a maravilha que teria sido Finney no papel de Jamie. Não obstante, Quilley fez um trabalho excelente, quase tão bom quanto Jason Robards.
Denis Quilley é um caso raro; ele era um ótimo ator, faz muito bem o seu papel mas — minha opinião — seu rosto tem formas tão incomuns e tão únicas, e sua voz é tão grave e marcante, que gritam por um papel característico; algo mais elaborado, um vilão, um estrangeiro, algo de época, uma fábula, uma tragédia grega, Shakespeare, um musical, o que for, só não o papel de uma pessoa regular e normal. Não é à toa que ele já estava escalado para trabalhar em Guys and Dolls, o musical norte-americano que Olivier sonhava montar e estrelar mas que acabou não acontecendo, por conta de seus problemas de saúde. A primeira opção de Olivier, aliás, para o papel de Jamie, era Albert Finney, mas ele não pôde aceitar, provavelmente por compromissos já assumidos no cinema. Tremo só de imaginar a maravilha que teria sido Finney no papel de Jamie. Não obstante, Quilley fez um trabalho excelente, quase tão bom quanto Jason Robards.
Michael Blakemore está hoje com 89 anos e continua dirigindo peças de teatro na Inglaterra. Já lançou dois livros de memórias nos quais fala extensamente de sua montagem de LDJ. Notório desafeto de Peter Hall, ele aproveita para dar também sua versão sobre todo o processo de substituição de Olivier no National, que foi doloroso e deixou feridas que até hoje não cicatrizaram (mesmo com a morte de Hall, em setembro passado, aos 86 anos). Maureen Lipman
tem 71 anos e trabalha regularmente na TV inglesa. Aos 77 anos, Ronald Pickup faz vários filmes por ano tanto no cinema quanto na TV. Em entrevista, durante as comemorações dos 50 anos do National Theatre, ele declarou, com muita emoção, que o momento mais extraordinário de sua carreira foi dividir o palco com Olivier em LDJ. Ronald acaba de interpretar Neville Chamberlain no filme Darkest Hour,
no qual Gary Oldman faz o papel de Winston Churchill.
No início
dos anos 70 Jonathan Miller fez parte da equipe de jovens diretores — junto a
Michael Blakemore, William Gaskill e John Dexter — escolhida por Olivier para
trabalhar com ele no National. Com certeza acompanhou como espectador o
processo criativo de Michael Blakemore em sua montagem de LDJ.
Na montagem
de Olivier esse problema é corrigido com um tom menos artificial e ensaiado nas
cenas em grupo e nos diálogos. Aqui e ali veremos sutilmente pequenas
interpolações: quando Constance pergunta se os filhos ouviram o ronco do pai
Denis Quilley diz sure we did, o que
não existe no texto; na conversa sobre as viagens marítimas de Edmund, Jamie
falará sobre o quanto prefere a Broadway e Olivier reagirá às falas de Quilley
interpondo pequenos comentários que também não estão no texto. O que Miller
pretendia era elevar esse expediente ao cubo. Segundo Jack Lemmon:
A crítica
elogiou Lemmon mas chicoteou a direção de Miller. Os atores ainda aparavam
arestas em ritmo e timing nas interrupções feitas por cada um e os críticos não
perdoaram; não gostaram do expediente e acusaram Miller de querer profanar um
monumento dramatúrgico norte-americano. O diretor ficou possesso. Em
entrevista, disparou: “Se levássemos [o autor de comédias] Neil Simon mais a
sério e Eugene O'Neill um pouco menos, acredito que iríamos restaurar algum
equilíbrio no teatro americano”. “Eu acho que é uma peça muito engraçada”, continuou
Miller, mordido. “E disse a eles, quando começamos os ensaios: ‘Vamos fazê-la
como Neil Simon tanto quanto possível’”. Miller transborda ressentimento e na
tentativa de justificar sua direção faz um samba do crioulo doido onde entram
dramas poéticos, épicos, tragédias gregas e sobram patadas até para O’Neill:
Bem mais
sóbrio, com a experiência e a humildade de quase 40 anos de uma carreira de
sucesso, e sem o ego hipertrofiado de Miller, Jack Lemmon colocou a discussão
nos trilhos:
A questão
levantada é muito válida. Por que não O’Neill? Porque Shakespeare está sendo
montado há 400 anos. Suas peças são tão conhecidas quanto a bíblia e embora a qualidade do texto nunca diminua, é saudável experimentar de outras formas com um material que já foi utilizado centenas de milhares de vezes. LDJ tinha
trinta anos em 1986 e tivera, até aquele momento, três ou quatro montagens
famosas. Com efeito, o texto não era tão conhecido e tão enraizado na cultura
popular para que liberdades fossem tomadas com ele. E há também o aspecto
autobiográfico; mudar o texto de LDJ equivale a mudar aquilo que o autor
consignou como sendo sua vida em família. O
interessante aqui é que, como veremos a seguir, não há na montagem de Miller
mudanças significativas no texto, e sim em sua execução. E, certamente, na
personalidade de alguns dos integrantes da família.
Chamuscado,
o elenco chegou a Nova York para estréia no Broadhurst Theatre. Houve
pré-estréias de 22 a 27 de abril e no dia 28 a peça estreou. As críticas foram menos
agressivas. Jack Lemon e Peter Gallagher foram amplamente elogiados. Kevin Spacey
e Bethel Leslie ficaram em segundo plano mas a temporada seguiu com êxito até 29
de junho. Em agosto a peça foi para uma temporada em Londres (e a partir de então
não tenho conhecimento de temporadas posteriores). Jack, Peter, Bethel e Miller
foram indicados para o Tony mas perderam. No ano seguinte a Image Entertainment
e o canal a cabo Showtime produziram uma versão filmada do espetáculo com direção
do próprio Miller e utilizando, ao que parece, o cenário da peça. O programa
foi ao ar em 13 de abril de 1987 e Jack foi indicado ao Globo de Ouro de Melhor
Ator, mas perdeu para Randy Quaid, que interpretou o ex-presidente norte-americano
Lyndon Johnson em LBJ: The Early Years.
A abordagem
é absolutamente naturalista. Não há espaço para a mais ínfima afetação ou
exageros. O drama, a tragédia e a comédia são naturais. São diálogos
inteiramente humanos, testemunhados por um público que poderia muito bem estar olhando
pelo buraco da fechadura. As falas são dadas com seu sentido exato e os atores
vão buscar sempre a entonação e intenção corretas, mesmo quando se perdem em
meio à sobreposição preconizada por Miller.
A sobreposição e a interposição: em determinados momentos, quando utilizada com critério, a sobreposição ajuda bastante. Dinamiza a ação, aumenta o realismo e enfatiza a dramaticidade. O problema é a utilização em excesso, como é o caso em questão. Se ela é benéfica em algumas cenas, em outras ela mutila completamente os diálogos e atrapalha a compreensão do todo. O'Neill não escrevia diálogos contendo frases que podiam ser simplesmente ignoradas e há bate-bocas em LDJ que mereciam ser cuidadosamente destrinchados, e não disparados com o fito único de ver quem ficará com a última palavra. Eu conheci LDJ através desta versão e quando tive acesso ao texto e a outras versões, seja no teatro ou em video, fiquei chocado com o tanto que se perde na sobreposição.
Quanto à interposição, é interessante quando usada com sutileza e na intenção correta. Ela é amplamente empregada por Peter Gallagher no 4º ato desta versão, e em geral com resultados positivos. Quando Edmund interpõe o monólogo de Macbeth para ilustrar o fato de tê-lo decorado em uma aposta com o pai, é perfeito. Mas quando Edmund interrompe James dezenas de vezes enquanto ele fala de sua mãe, para corrigi-lo e fazer pouco da história, há uma subversão total daquilo que o autor desejou transmitir. James não está fazendo o sermão tradicional sobre "o valor de um dólar" que Edmund já conhece sobejamente, e sim, abrindo seu coração como fez pouquíssimas vezes com o filho caçula. Não por coincidência, há uma única rubrica na réplica de Edmund: "moved". É mais uma das bandeiras vermelhas desta versão: assim como partiu-se de um pressuposto segundo o qual não há por que ter rios de respeito com o texto, as rubricas de O'Neill são quase sempre ignoradas. E num texto de tamanha qualidade, tamanho esmero e cuidado com a unidade e com o todo, a conseqüência disso não pode ser boa.
Há também um expediente menos utilizado de criar em cima do texto; mais do que simplesmente interpor, aqui e ali falas são criadas para determinados momentos. Depois da história de Shaughnessy, Edmund diz God, Papa, I should think you’d get sick of hearing yourself! e sai da sala. Nesta versão Jack Lemmon grita "Edmund!", ameaçador, o que provoca a fala seguinte de Mary, de que ele não deve se irritar com o filho doente. Na conversa telefônica com o médico, durante o almoço, há toda uma encenação de Lemmon sobre a ligação estar péssima e ele não ser ouvido e nem entender o que o outro diz. São criações válidas que em nada prejudicam a peça, mas talvez não tenham agradado os puristas. Pelo lado positivo, esta é a montagem (pelo menos em se tratando da versão televisiva) onde há menos cortes e a maior parte deles concentra-se no 4º ato.
São todos bons atores. É um elenco de qualidade e trabalha muito bem em conjunto. Dito isto, podemos afirmar que Jack
Lemmon é, com folga, o melhor de todos os James Tyrone. Ele pode não ser tão
fisicamente perfeito quanto Olivier, mas compensa com os outros atributos
do personagem: é frio mas altamente reativo, não tem nervos, é ocasionalmente
sentimental mas é primordialmente um miserável. Um avarento. Não gasta com os outros e não gasta consigo mesmo. Jack Lemmon era um grande ator, tinha um vasto cabedal dramático e é o único ator em cuja interpretação pude detectar com perfeição o grande paradoxo de James: ele ter um caráter tão nefasto e ao mesmo tempo uma personalidade tão carismática. Entende-se claramente a fala de Edmund: I’m like Mama, I can’t help liking you, in spite of everything. Lemmon acerta em praticamente todas as suas escolhas: está em choque permanente com Jamie, e vai brigar com o primogênito havendo ou não razão para isso; equilibra-se entre o carinho e uma espécie de decepção enfadada com a esposa, e pode estar até sentindo piedade pela desgraça do filho mais novo, mas não demonstra.
Admirador confesso de Olivier, Lemmon fez um trabalho que lembra o método de composição do inglês: há uma inflexão estudada para todas as falas de James. É um trabalho artesanal. E mais do que isso: é inteiramente original. Seu James foi esculpido sem trazer embutida nenhuma recordação de James anteriores. Sim, Jack a essa altura de sua vida e de sua carreira já carregava um sortido de cacoetes e vícios de interpretação que são reconhecíveis (assim como Ralph e Olivier, aliás). Não obstante, seu trabalho é único.
Há inúmeras cenas memoráveis neste trabalho de Jack. Saltam à memória imediatamente o momento em que ele percebe que Mary voltou à morfina. Ralph e Olivier seguiram a rubrica e fizeram lindamente a cena, mas Lemmon transcendeu o texto. A expressão não é de tristeza e sim de terror, e ele titubeia, como uma estrutura que começou a ruir, e vai desabando aos poucos até acabar prostrado em uma cadeira, simbolizando com perfeição a fragilidade de sua certeza e a facilidade com que se poderia derrubá-la. Ele inteiro treme, da cabeça aos pés, dos olhos à voz. Um primor. Igualmente ótima é a carraspana em Jamie quando Mary sai e ele diz, cinicamente, another shot in the arm. James exprobra o filho com o ultraje e a reação que o comentário horrendo de Jamie merece; a cena seguinte, em que fala sobre não haver diferença entre as filosofias seguidas por cada filho também transcende o texto.
As cenas de Jack com Peter Gallagher seguem a mesma linha de excelência. A discussão dos dois no 4º ato supera as outras versões. Jack entra de cabeça na dicotomia "avareza X piedade" e dá um show. Acreditamos piamente que ele quer o melhor para o filho doente mas sabemos que ele não quer gastar nisso. Seu Stop that coughing!, acintoso, egoísta e covarde ao filho, que está de costas para ele, estrebuchando, é inesquecível. Olivier deu a fala abraçando Ronald Pickup, quase sufocando-o, em um paroxismo de remorso e compaixão. Jack, por outro ângulo, equilibra a piedade com o asco que não pode sopitar, de um filho seu contrair aquela doença. É sensacional. A frieza entendiada com que se nega a continuar a discussão depois do desabafo de Edmund, a maneira como apresenta ao filho a alternativa à famigerada "state farm", bem como sua reação quando ele aceita, vencido pelo cansaço, são aulas! Ele realmente não tem nervos. Edmund está esgotado pela discussão e só o que James deseja é afastar o fantasma de gastar com uma instituição cara, de primeira linha.
Peter Gallagher é, também com larga vantagem, o melhor Edmund dos três. Ronald Pickup arranhou a superfície; Gallagher se enterrou até a testa no personagem. Sua entrega à doença, à exaustão, à depressão e à desesperança de Edmund é impressionante. As falas do garoto acossado pela tísica começam a fazer sentido, como ocorre quando a interpretação é superior. Pela primeira vez vamos entender o que ele quer dizer quando afirma que I don’t want to mix up in any arguments. I feel too rotten. Ele aparenta esse mal-estar. E fala com a naturalidade de um doente. Se queixa com a voz fraca e desafinada dos doentes. No 4º ato ele está damp and chilled; se abriga com um frio que todos acabamos sentindo. Seu monólogo é o retrato precocemente esmaecido de um poeta desvairado e embrigado pela beleza do mar. Mais uma vez Peter mergulha e nada em um oceano onde os outros Edmunds só molharam os pés. E Peter tosse como o mais desvalido dos tuberculosos. Sua tosse impressiona e assusta. Está além de qualquer interpretação ou fingimento. Suas reclamações não são parte de um torneio de quem fala mais, grita mais ou ofende mais; são aquilo que O'Neill desejou comunicar desde o princípio: o grito surdo do único personagem que ainda tinha a esperança de sair vivo daquela casa mal-assombrada.
A Versão de Jack Lemmon
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Poster da montagem de Jack Lemmon, arte de Paul Davis |
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Jonathan Miller |
Não tive,
evidentemente, a oportunidade de ver peças dirigidas por Miller no teatro, mas assisti
a versão televisiva de seu Merchant of
Venice, com Olivier (péssima) e algumas de suas direções para a célebre “The
Complete Works of William Shakespeare” produzida pela BBC nos anos 70 e 80. O Othello de Anthony Hopkins é todo ruim
mas a direção, particularmente, é amadorística, ridícula, constrangedora.
Enfim, é possível que o talento de Miller florescesse única e exclusivamente no
teatro. Ou talvez, mesmo com toda a experiência do mundo, Shakespeare não fosse
seu forte. Justiça seja feita, a série da BBC não é exatamente lembrada por ter
sido boa.
Nos anos 80
ele estava nos Estados Unidos e no segundo semestre de 1985 decidiu montar
LDJ. Sua escolha para o papel de James recaiu sobre Jack Lemmon, uma das figuras
mais reverenciadas do cinema norte-americano e mundial, e, em menor escala, uma
estrela de teatro. “Eu sempre soube que queria interpretar O'Neill em algum
momento”, declarou Jack, em entrevista da época. “E quando ouvi que Jonathan
Miller ia dirigir, me empolgou loucamente. Pensei: ‘Meu Deus, sim! Porque não
será apenas mais uma remontagem’".
Não, não
seria. Miller tinha uma idéia simples: aumentar drasticamente o ritmo dos
diálogos, dando, com isso, mais naturalidade às discussões. Nos momentos de
bate-boca, os atores basicamente não esperariam que o outro terminasse sua
frase e interromperiam com a frase seguinte. Quando necessário, palavras
poderiam ser adicionadas ou subtraídas para ajudar na continuidade. Isso daria
realismo e dinamismo às cenas, diminuindo, inclusive, a duração da peça. Na
teoria faz algum sentido. No filme de Lumet percebemos, na cena da história de
Shaughnessy, Kate Hepburn repetir de forma algo monocórdia as broncas que dá em
James: Jaaaaames! You mustn’t be so touchy, Jaaaames, be quiet!, Now, Jaaaames, don’t lose your temper, e
Jaaaames, there’s no reason to scold
Jamie. Pouco depois, no diálogo entre James e Jamie, notaremos cada
uma das três vezes em que Ralph dirá That’s
a lie para Jamie, e assim por diante.
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Propaganda da pré-estréia em Washington |
O que significa é que se você tem uma
família de cinco pessoas, atravessando o amor e o ódio que esta atravessa, você
não senta e espera o fim das frases. Quando você analisa o que O'Neill
escreveu, descobre que está respondendo a coisas que são ditas no meio das
falas anteriores. Você realmente não esperaria. Então há muita sobreposição e
interposição, de vez em quando. Algumas palavras serão perdidas, mas esperamos
que não o que importa, que é a emoção.
Para dividir
o palco com Lemmon, Miller chamou Bethel Leslie (Mary), que tinha 57 anos mas
aparentava bem mais, e já era uma veterana do teatro e da televisão. Peter
Gallagher (Edmund) era o contrário de Bethel: estava com 31 anos, quase quinze
de carreira na Broadway, mas ainda tinha, como continuou tendo por muitos anos,
cara de menino. Kevin Spacey (Jamie) estava prestes a completar 27 anos e
fizera sua estréia na Broadway em 1982, sob a direção de Mike Nichols. E aquela
era a estréia de Jodie Lynne McClintock, que interpretaria Cathleen. Antes de
chegar à Broadway, Jack e a companhia resolveram testar o espetáculo no
National Theatre de Washington, em uma temporada que foi de 25 de março a 20 de
abril de 1986.
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"There’s nothing like the first after-breakfast cigar, if it’s a good one"... |
Suponho que estava reagindo, de certa forma,
a produções anteriores, que enfatizaram a dignidade obscura da peça e o drama
poético. E me parece ser um conceito equivocado do gênero, do trabalho. Não
creio que seja um épico. Mesmo se O'Neill o concebeu como um épico, não é
realmente um épico. Acontece durante um dia inteiro — lembremos que tem a
unidade de tempo da tragédia tradicional grega — mas não é a Casa de Atreu; não
é Agamemnon. E se por alguma razão equivocada O'Neill pensou em um épico, ele
realmente canalizou equivocadamente suas melhores intenções.
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Jack e Peter Gallagher em foto promocional de LDJ |
Em relação ao que os críticos disseram, eles
tinham razão porque fomos analisados em nossa primeira noite em Washington e
éramos — e ainda somos — um trabalho em progresso. A sobreposição não estava,
naquele momento, tão clara e limpa como está ficando. Mas discordo no sentido
de que os críticos consideraram que a abordagem toda estava errada. Por que
podemos encenar Shakespeare de oitenta mil maneiras — esta cena sai, esta
entra, você vê o fantasma, você não vê? Por que não O'Neill?
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Gallagher e Spacey em cena de LDJ |
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Propaganda da montagem londrina de LDJ |
A sobreposição e a interposição: em determinados momentos, quando utilizada com critério, a sobreposição ajuda bastante. Dinamiza a ação, aumenta o realismo e enfatiza a dramaticidade. O problema é a utilização em excesso, como é o caso em questão. Se ela é benéfica em algumas cenas, em outras ela mutila completamente os diálogos e atrapalha a compreensão do todo. O'Neill não escrevia diálogos contendo frases que podiam ser simplesmente ignoradas e há bate-bocas em LDJ que mereciam ser cuidadosamente destrinchados, e não disparados com o fito único de ver quem ficará com a última palavra. Eu conheci LDJ através desta versão e quando tive acesso ao texto e a outras versões, seja no teatro ou em video, fiquei chocado com o tanto que se perde na sobreposição.
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Jack Lemmon e Peter Gallagher |
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Gallagher, Leslie, Lemmon e Spacey |
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Jack Lemmon: o melhor de todos os James |
Admirador confesso de Olivier, Lemmon fez um trabalho que lembra o método de composição do inglês: há uma inflexão estudada para todas as falas de James. É um trabalho artesanal. E mais do que isso: é inteiramente original. Seu James foi esculpido sem trazer embutida nenhuma recordação de James anteriores. Sim, Jack a essa altura de sua vida e de sua carreira já carregava um sortido de cacoetes e vícios de interpretação que são reconhecíveis (assim como Ralph e Olivier, aliás). Não obstante, seu trabalho é único.
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"There’s very little choice between the philosophy you learned from Broadway loafers, and the one Edmund got from his books"... |
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"God in heaven"... James percebe que Mary voltou à morfina |
As cenas de Jack com Peter Gallagher seguem a mesma linha de excelência. A discussão dos dois no 4º ato supera as outras versões. Jack entra de cabeça na dicotomia "avareza X piedade" e dá um show. Acreditamos piamente que ele quer o melhor para o filho doente mas sabemos que ele não quer gastar nisso. Seu Stop that coughing!, acintoso, egoísta e covarde ao filho, que está de costas para ele, estrebuchando, é inesquecível. Olivier deu a fala abraçando Ronald Pickup, quase sufocando-o, em um paroxismo de remorso e compaixão. Jack, por outro ângulo, equilibra a piedade com o asco que não pode sopitar, de um filho seu contrair aquela doença. É sensacional. A frieza entendiada com que se nega a continuar a discussão depois do desabafo de Edmund, a maneira como apresenta ao filho a alternativa à famigerada "state farm", bem como sua reação quando ele aceita, vencido pelo cansaço, são aulas! Ele realmente não tem nervos. Edmund está esgotado pela discussão e só o que James deseja é afastar o fantasma de gastar com uma instituição cara, de primeira linha.
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O magnífico Edmund de Peter Gallagher |
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Kevin Spacey |
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Bethel Leslie |
A atriz desequilibra completamente essa versão. Sua Mary é tão odiosa que não provoca
qualquer compaixão. Quando pede desculpas por seus destampatórios, não convence
porque é cínica e falsa. No 3º ato James lhe pergunta mais uma vez Can’t you forget? Bethel diz No!, grosseira, destemperada, como se
estivesse ralhando com um neto mal-criado. No original ela diz No, dear, “with detached pity”. Logo,
quando diz mais à frente I don’t want to
be sad, or to make you sad. I want to remember only the happy part of the past,
Bethel não é crível porque nunca demonstrou amor nenhum nem pelo marido e nem
pelos filhos. O que acabamos desejando é a absolvição de James, por ter que tolerar
esse desastre de esposa.
Na
sobreposição de falas ela despeja seu texto como um locutor de futebol. Jack Lemmon tem uma fluidez dramática em sua performance e uma realidade absoluta em tudo que diz, tal é a meticulosidade com que estudou suas falas. No caso de Bethel, falas
importantes, significativas, cheias de sentimento, somem na rapidez telegráfica
com que são desperdiçadas. E isso quando ela não tenta ganhar a atenção pelo
grito. No célebre diálogo sobre ela ter que ir até a farmácia, tão
maravilhosamente realizado por Kate e Ralph, ela responde aos berros e até o
pedido de desculpas de James é torto, sem qualquer remorso. Mesma coisa quando Edmund lhe diz, no 3º ato, It’s pretty hard to take at times, having a
dope fiend for a mother! É uma fala terrível e Edmund se desculpa,
envergonhadíssimo, logo em seguida. Mas nesta montagem sentimos que ela merece,
por ser tão insuportável. Ela ainda o estapeia depois dessa fala, em outro grande
erro de direção.
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Peter Gallagher e Bethel Leslie |
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A Mary de Bethel Leslie |
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Gallagher, Lemmon e Spacey na época de LDJ |
**********
Essa montagem televisiva foi meu primeiro contato com a peça, em 1991. Eu via o estojo com duas fitas VHS — raro, indicando um filme enorme — empoeirando na prateleira da velha e saudosa Hobby. A capa trazia a foto de Jack Lemmon ostentando aquele penteado de Beethoven. Nunca vi alguém alugá-lo. Fã de Lemmon desde sempre, e ainda mais depois de assistir Some Like it Hot, dois ou três anos antes, resolvi dar uma chance à LDJ. E para meu limitadíssimo discernimento da época, com apenas dezenove anos, gostei. Assisti mais de uma vez. Era impossível não se impressionar com o alto nível das interpretações, sobretudo de Jack. Mas não tive nenhuma epifania moral ou artística. Esqueci LDJ no momento em que devolvi o estojo à locadora. Poucos anos depois peguei na metade a versão de Lumet na televisão. Não gostei. A lembrança de Jack Lemmon anulou Ralph Richardson.
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CCBB de São Paulo, 2002: nos bastidores de LDJ com Sérgio e Cleyde, e a visita da querida Sônia Oiticica |
Bibliografia:
Agradecimento especial à Larissa Maragno, Cris Ferraz Prade e Tom Anderson
- OLIVIER, Laurence. Confissões de um Ator. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1985.
- O'NEILL, Eugene. Long Day's Journey into Night. New Haven, Yale University Press, 1989.
- _____. Long Day's Journey into Night. London, Jonathan Cape, 1962.
- ROSENTHAL, Daniel. The National Theatre Story. London, Oberon Books, 2013.
- http://collections.vam.ac.uk/item/O1374581/long-days-journey-into-night-set-design-annals-michael/
- http://collections.vam.ac.uk/item/O144767/long-days-journey-into-night-set-model-annals-michael/
- http://digitalcommons.buffalostate.edu/saprograms/55/
- https://en.wikipedia.org/wiki/José_Quintero
- http://levyarchive.bam.org/Detail/occurrences/3157
- https://screenplaystv.wordpress.com/2011/10/07/long-days-journey-into-night-atv-for-itv-1973/
- https://www.broadway.com/buzz/11271/campbell-scott/
- https://www.csmonitor.com/1986/0501/lmiller-f.html
- https://www.csmonitor.com/1988/0616/llong.html
- http://www.eoneill.com/artifacts/reviews/ldj3_times2.htm
- http://www.eoneill.com/library/newsletter/x-3/x-3d.htm
- http://www.flickriver.com/photos/42399206@N03/tags/playbill/
- https://www.ibdb.com/broadway-cast-staff/jason-robards-75024
- https://www.ibdb.com/broadway-cast-staff/jos-quintero-15929
- https://www.nationaltheatre.org.uk/sites/default/files/stagebystage-pt2_early-years.pdf
- http://www.nytimes.com/1971/12/23/archives/olivier-fascinating-in-london-long-days-journey.html
- http://www.nytimes.com/1976/01/29/archives/long-days-journey-into-greatness.html
- http://www.nytimes.com/1985/09/30/theater/theater-jason-robards-in-the-iceman-cometh.html
- https://www.nytimes.com/1986/04/27/theater/lemmon-relives-the-past-in-o-neill-s-journey.html
- http://www.nytimes.com/1986/04/29/theater/stage-a-new-long-day-s-journey.html
- http://www.nytimes.com/1988/06/15/theater/review-theater-the-stars-align-for-long-day-s-journey.html
- https://www.theguardian.com/books/2013/sep/17/laurence-olivier-national-theatre-blakemore
- https://www.theguardian.com/news/2003/oct/07/guardianobituaries.filmnews
- https://www.washingtonpost.com/archive/lifestyle/1986/03/24/lemmon-with-a-new-twist/4fa2d199-d118-4457-b084-5a675cf1ba38/?utm_term=.f38b180b6699