ALBERT FINNEY (1936/2019)
Finney era provavelmente o último que restava dessa segunda geração de grandes atores britânicos do século XX, nascida entre os anos 20 e 30, que incluía Richard Burton, Alan Bates, Peter O'toole, Richard Harris, e assim por diante (Hopkins e Derek Jacobi vieram um pouco depois), e que sucedeu Olivier, Gielgud e Richardson. Um de seus primeiros grandes sucessos no teatro foi justamente Coriolano, em 58, inicialmente como stand in de Olivier e depois como seu substituto. Em 60 ele fez sua estréia no cinema no papel de Mick, filho do Archie Rice de Olivier, em The Entertainer. Impressionou pela voz, pela presença, pelo carisma, pelos assustadores olhos azuis e em geral, pelo imenso talento.
Toda essa geração explodiu no cinema por essa época; Burton com Cleópatra, O'toole com Lawrence, Finney com Tom Jones, Bates com Zorba e Harris com Sporting Life, mas Finney acabou sendo o mais bissexto de todos eles. Alternava teatro e cinema com tranqüilidade e nunca se permitiu virar escravo de qualquer um deles. Seu melhor papel no cinema, por sinal, só viria em 1983, com The Dresser, de Peter Yates, baseado na peça de Ronald Harwood (não confundir com o pálido remake de 2017, com Anthony Hopkins). Sua performance nesse filme pode ser catalogada como uma das melhores da história do cinema. Tudo é perfeito em Finney, no papel de Sir, o velho ator. Poucas vezes vi tanta intensidade, um vozeirão tão poderoso e uma emoção tão verdadeira. Humor, drama e tragédia. As poucas cenas de seu Lear, no filme, são melhores do que qualquer Lear que já vi até hoje com exceção justamente do de Olivier, que por extraordinária coincidência estava fazendo seu próprio Lear para a televisão, nesse mesmo ano.
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O Sir de Finney, interpretando Lear |
Tom Courtenay fez brilhantemente o papel do camareiro em The Dresser, reprisando o personagem que criou no West End. Eis o que disse sobre Finney, na época: "A peça é sobre a interação de dois homens, e sem querer denegrir os atores com quem contracenei nas montagens teatrais (Freddie Jones e Paul Rogers) o fato de que Albert é o que é - um verdadeiro gigante teatral - faz com que o filme seja melhor, como um todo. Eu sei disso".
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Finney e Courteney |
Finney se foi aos 82 anos, após uma batalha com o câncer. No rim, para choque de todos nós, seus admiradores há tantos anos, que imaginávamos que sua desgraça seria o fígado ou o pulmão.
Um ator absolutamente maravilhoso e inigualável. (8/2/2019)
THE GATHERING STORM (2002)
Há tempos acalento a ambição de escrever um pequeno artigo com uma análise comparativa de várias interpretações diferentes de Winston Churchill, no cinema. Até então eu já assistira quatro Churchills, de Brian Cox a Gary Oldman, passando por Brendan Gleeson e John Lithgow, mas me faltava um dos mais importantes, senão o mais importante de todos: o de Albert Finney. E esta semana, ainda tocado por sua morte, assisti The Gathering Storm, feito para TV pela HBO em 2002. O tema do filme é a relação inesperada e profundamente benéfica entre Winston, então um membro apagado e decadente do parlamento britânico, e Ralph Wigram, funcionário do ministério de relações exteriores; na medida em que a guerra se aproximava, o primeiro ministro Stanley Baldwin procurava esconder informações sobre a expansão bélica dos alemães, com o fito de evitar que a Grã-Bretanha participasse de qualquer conflito armado. Ciente disso, um oficial do governo e amigo de Winston, Desmond Morton, coopta Wigram para que ele copie documentos secretos da chancelaria e os entregue a Winston, para que ele possa alertar a população e o próprio governo sobre a necessidade do reino se preparar para uma guerra iminente e inevitável.
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O Winston de Finney |
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Redgrave e Finney |
Com a maior justiça, Finney levou o Globo de Ouro, o Primetime Emmy e o Bafta de Melhor Ator. Foi a última vez que recebeu os três.
O filme é bom por esses motivos mas quando termina há uma sensação de que é o momento em que deveria estar começando. Parece um teaser da maravilha que ainda estava por vir. Nestes tempos de séries sobre a realeza britânica, dói na alma que a HBO não tenha feito isso já naquela época. Algo como Memórias de Bridshead. Uma microssérie. A vida de Churchill é material para vários filmes e ninguém o teria interpretado de maneira tão definitiva quanto Finney.
Recomendo. Com saudade e admiração por Finney, e de coração partido, pelo que poderia ter sido e não foi. (11/2/2019)
ADULTING, por Bill Maher
Impressionado com as reações á morte de Stan Lee, Bill Maher escreveu um texto no blog de seu programa comentando que uma importância excessiva está sendo dada por adultos aos quadrinhos e aos filmes de super-herói. Na opinião de Maher, quadrinhos são para crianças e a inteligência dessas pessoas seria utilizada de forma bem mais produtiva com literatura adulta.
O artigo teve uma repercussão gigantesca, ele perdeu milhares de seguidores no Twitter e - instado pela mídia - reiterou seus comentários em seu programa semanal.
Concordo com 100% do que foi dito por Maher. (01/02/2019)
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The guy who created Spider-Man and the Hulk has died, and America is in mourning. Deep, deep mourning for a man who inspired millions to, I don’t know, watch a movie, I guess. Someone on Reddit posted, “I'm so incredibly grateful I lived in a world that included Stan Lee.” Personally, I’m grateful I lived in a world that included oxygen and trees, but to each his own. Now, I have nothing against comic books – I read them now and then when I was a kid and I was all out of Hardy Boys. But the assumption everyone had back then, both the adults and the kids, was that comics were for kids, and when you grew up you moved on to big-boy books without the pictures.
But then twenty years or so ago, something happened – adults decided they didn’t have to give up kid stuff. And so they pretended comic books were actually sophisticated literature. And because America has over 4,500 colleges – which means we need more professors than we have smart people – some dumb people got to be professors by writing theses with titles like Otherness and Heterodoxy in the Silver Surfer. And now when adults are forced to do grown-up things like buy auto insurance, they call it “adulting,” and act like it’s some giant struggle.
I’m not saying we’ve necessarily gotten stupider. The average Joe is smarter in a lot of ways than he was in, say, the 1940s, when a big night out was a Three Stooges short and a Carmen Miranda musical. The problem is, we’re using our smarts on stupid stuff. I don’t think it’s a huge stretch to suggest that Donald Trump could only get elected in a country that thinks comic books are important.
http://www.real-time-with-bill-maher-blog.com/index/2018/11/16/adulting
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BOECHAT
Num mundo de bucéfalos de direita e esquerda, norte, sul, leste e oeste, de cretinos tão ignorantes e tão falastrões, a morte de um homem brilhante como Boechat é tragédia ainda maior e mais amarga.
É aquela injustiça fundamental: por que, com tantos imbecis nocivos e inúteis por aí, tem que morrer justamente uma das poucas pessoas conhecidas pela inteligência e pela lucidez?
Lamento imensamente. (11/2/2019)
CREED II (2018)
Muito ruim...
Não sou apenas fã de todos os filmes de Rocky; eu estava nos Estados Unidos quando Rocky IV entrou em cartaz, assisti no cinema, chorei com a morte de Apollo, me apaixonei por Brigitte Nielsen, trombei com Dolph Lundgren em um elevador em NY, curti toda a mística EUA x URSS que o filme trazia, e, por fim, aplaudi o primeiro Creed como uma reciclagem interessante dos personagens e da trama, depois de dois Rockys insípidos.
Creed II matou a franquia. O ressurgimento de Ivan Drago era carta preciosa na manga dos produtores e poderia ter rendido um filme tão melhor. Tal como foi feito, raso, sem graça e sem assunto, Creed II é o pior filme da série. Esperava-se a volta de Carl Weathers em flashbacks de som ou imagem, assim como ocorreu com Burgess Meredith em Rocky V (no que considero a melhor, mais linda e mais emocionante cena daquele filme) e ao invés disso temos apenas seu filho: um mala, sem um pingo do talento ou do carisma do pai, campeão mundial sem méritos e sem predicados, chatinho e mimizento.
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Stallone e Dolph Lundgren |
Em Creed II temos uma situação duplamente contrária; Drago entrou em desgraça com seu país quando foi derrotado por Rocky então perdeu o prestígio, a mulher, a carreira e o dinheiro. Seu filho não tem qualquer privilégio e é treinado nos mesmos moldes rústicos de Stallone, em Rocky IV. Só que Adonis Creed também não recebe o treinamento caro e mecânico de Ivan Drago; ele está lesionado, treina sem vontade, com uma eterna expressão de dor de barriga e não há, como em todos os filmes de Rocky, aquela catarse musical do treino, em que o personagem faz as pazes consigo mesmo e com seus problemas. Nada é crível, nada emociona. Até o câncer de Rocky sumiu como por encanto.
Uma pena. (13/2/2019)
OKKO'S INN (2018)
Sem qualquer expectativa assisti
若おかみは小学生! (cuja tradução literal é "A jovem estalajadeira é uma estudante de primário!", mas no inglês virou o simples Okko's Inn). É a história de uma menina que perde os pais em um acidente automobilístico e vai morar na pousada de sua avó materna. O plano é que ela eventualmente assuma a direção do local quando a avó não puder mais trabalhar, mas desde o primeiro momento ela se dá conta de que o local é habitado por fantasmas. Longe de assustá-la, porém, eles ajudam a menina a lidar com a perda e a nova situação. O tema é tratado com delicadeza, sem mergulhar na tragédia de Okko. Há o sentimentalismo fundamental das animações japonesas mas tudo permeado com bom humor e uma leveza apropriada ao público mais infantil.
Impressionado com a beleza da animação, descubro que o responsável pelo roteiro (baseado nos livros de Hiroko Reijô) é Reiko Yoshida, roteirista de animações de grande sucesso como O Reino dos Gatos (2002) e A Voz do Silêncio (2016), além de séries como a divertidíssima Girls und Panzer (2012). Mas a surpresa, mesmo, veio com a descoberta de que o diretor, Kitarô Kôsaka, embora esteja apenas em seu quarto filme como diretor, é um dos melhores e mais famosos animadores japoneses. Participou, como key animator, de produções do quilate de Akira (1988) e de todos os maiores sucessos do Ghibli, desde Nausicaa, passando por Mononoke Hime, Cemitério dos Vagalumes, A Viagem de Chihiro, até o último longa de Miyasaki, Vidas ao Vento.
Mais um herdeiro do Ghibli e de toda a melhor época da animação japonesa.
Recomendo.
A VILÃ (Ak-Nyeo, 2017)
Mais uma vez a Coréia do Sul dá show em matéria de cinema. Mistura de La Femme Nikita com Kill Bill, escoimando-se os defeitos de ambos. O elenco é ótimo, com destaque para Ok-bin Kim e, sobretudo, Seo-hyeong Kim.
Recomendo, e agora verei Confession of Murder, do mesmo diretor, Byung-gil Jung. (6/4/2019)
A FACE IN THE CROWD (1957)
O elenco é bárbaro: Patricia Neal encanta e se sustenta perfeitamente pelo talento e pelo charme. Walter Mathau, Tony Franciosa e Lee Remick (linda e jovem) também estão ótimos, mas são todos aperitivo para a impecável performance de Andy Griffith.
Eu, que o conhecia vagamente pelos episódios esparsos de Matlock que assisti nos Estados Unidos, no início da década de 80, fiquei de queixo absolutamente caído por seu trabalho. Uma maravilha. Griffith era um talento maiúsculo que infelizmente acabou não descoberto e engolido pela televisão. Pior do que isso: por alguma razão (provavelmente o macartismo), A Face in the Crowd parece ter sido esquecido nas premiações de 1957 e 1958. Griffith, Neal, Schulberg e Kazan mereciam muito uma indicação. E Griffith, sobretudo, merecia o prêmio muito mais do que Alec Guiness pela Ponte do Rio Kwai.
Recomendo. É atualíssimo. (26/4/2019)
TEATRO
Não carece de legenda. (14/02/2019)
UMA NAÇÃO SEM NOÇÃO, de Ricardo Rangel
Com o máximo prazer compareço ao lançamento de “UMA NAÇÃO SEM NOÇÃO”, livro do querido Ricardo Rangel, pensador brilhante, de cultura frondosa e dono do melhor e mais atilado comentário político da atualidade.
Recomendo a todos. (16/2/2019)
JÔ
Surpresa inusitada e maravilhosa: ser citado por Jô Soares no segundo volume de suas memórias.
Jânio - Vida e Morte do Homem da Renúncia
Vol I: "Um Moço Bem Velhinho"
Bernardo Schmidt
Editora O Patativa
350 pgs ilustradas
R$ 30,00 (Frete incluso para todo o Brasil)
Compre através do e-mail editora.opatativa@gmail.com
NEO-LIBERALISMO
É uma decepção atrás da outra... (3/4/2019)
STANLEY DONEN (1924/2019)
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Stanley Donen |
Cantando na Chuva sobreviveu a todo e qualquer teste de qualidade na minha vida. Mais do que isso, ele não parou de me entreter e de me ensinar coisas novas. Apenas há alguns anos descobri que a trilha sonora do filme é uma homenagem aos compositores Nacio Brown e Arthur Freed, e que todas as músicas do filme (com exceção de “Make'em laugh”, creio) fizeram parte de musicais da Metro no fim do anos 20, momento em que surgiu o cinema falado, e durante toda a década de 30. E sabendo disso fui atrás desses filmes, o que tem me proporcionado prazer contínuo e me permitido conhecer jóias inteiramente esquecidas do cinema norte-americano produzido no período que precedeu a segunda guerra.
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Donald, Stanley e Gene |
Minha vida é melhor por ter assistido um filme tão encantador, tão delicioso, tão benfazejo e de qualidade artística tão extraordinária como Cantando na Chuva. E por essa razão meu melhor “Obrigado” vai neste momento para Stanley Donen. (23/2/2019)
ANO NATSU HE
A lindíssima “Ano Natsu He“ (traduzida para o inglês como “One Summer's Day“) que embala a seqüência inicial de “Sen to Chihiro no kamikakushi“ (A Viagem de Chihiro), tocada no piano pelo seu próprio compositor, Joe Hisaishi, acompanhado pela Filarmônica de Londres. (11/3/2019)
LEAVING NEVERLAND (2019)
Acabo de assistir as quatro horas do documentário de Dan Reed sobre Michael Jackson. Trata-se do depoimento de dois rapazes - James Safechuck e Wade Robson - que afirmam ter sido molestados sexualmente por Michael durante anos. Tendo sido fã de Michael desde que me conheço por gente, assistido seu show no Morumbi em 1993 e celebrado sua absolvição em 2005, confesso que foi brutal.
Wade Robson não me convenceu. Tem con man escrito na testa. Há inúmeros "poréns" naquilo que diz, naquilo que ele e sua família fizeram para estar próximos de Michael e, sobretudo, no fato de ter testemunhado a favor dele em 1993 e 2003. Além disso, manteve amizade com o artista até sua morte e há pouco ainda tentava, da maneira mais humilhante, se envolver com todo e qualquer evento em homenagem a Michael, que pudesse lhe render dinheiro ou prestígio. À parte de ter conhecido o artista e até certo ponto privado com ele, nada do que diz se sustenta. Um bom advogado destrói toda sua argumentação em segundos. E o que restar em pé estará coberto de reasonable doubt.
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Michael e James Safechuck |
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Assisti seu show no Brasil em 1993. Foi frio. Não teve a paixão e a explosão de música, canto e dança que o público esperava. |
Continuo considerando Michael um artista inigualável e seguirei ouvindo e amando suas músicas. Mas hoje tenho a triste certeza de que ele não era apenas uma pessoa imensamente perturbada; ele era um pedófilo. Se for provado que James mentiu, eu darei a mão à palmatória com prazer. Mas duvido que isso aconteça.
Poderia falar mais, mas o melhor é assistir.
É doloroso.
Tem que ser visto. (14/3/2019)
O PACIENTE - O CASO TACREDO NEVES (2018)
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Tancredo Neves |
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A foto terrível de Tancedo e a junta médica |
Em termos artísticos, não importa o quanto eu já esteja acostumado com a falta de qualidade do cinema brasileiro, eu continuo me decepcionando. A imagem é de novela, e não de filme; a direção de arte é nenhuma. Tudo é fake, tudo é cenário, tudo tem cara de estúdio. O roteiro não chega a ser ruim, mas a direção de atores é inexistente e prevalece uma canastrice fundamental. Othon, Esther Góes (Risoleta), Mário Hermeto (Tancredo Filho), Luciana Braga (Inês Neves), Otávio Müller (Dr. Renault) e Emiliano Queiroz (Dr. Batista Rezende) estão bem. Já Paulo Betti (Dr. Pinotti), Leonardo Franco (Gilberto Assis) e Leonardo Medeiros (Pinheiro Rocha) estão exagerados e caricatos.
Vale pelo triste registro histórico. Não há conspiração nenhuma de quem quer que seja, na morte de Tancredo. Houve, sim, a irresponsabilidade criminosa de um grupo desprezível de trapalhões. (22/4/2019)
A DOG'S LIFE
Chaplin, Keaton, Lloyd a Laurel & Hardy com seus amigos (25/4/2019)
ANTUNES
Por uma abençoada confluência de astros, minha entrada na faculdade coincidiu com um período de fastígio de Antunes no SESC da Vila Nova, ao lado do Mackenzie. Eu, com 21 anos, era uma esponja de cultura teatral e, munido de minha carteira de meia-entrada da UNE, transformei o teatro do SESC (e basicamente todos os teatros de São Paulo) em minha segunda casa. Assisti Macbeth três vezes. Vereda da Salvação mais outras tantas. Depois levava os amigos. Minha mãe viu Macbeth comigo no Municipal e Vereda lá no SESC (apaixonou-se perdidamente por Luis Melo). Qualquer coisa que acontecesse por ali, eu ia.
Não vou repisar aqui o que significou para a minha vida ter assistido o clássico de Shakespeare encenado por Antunes e interpretado por Melo. Já o fiz muitas vezes. Mas em uma das ocasiões em que fui comprar ingressos para essa ou outra peça (Gilgamesh, creio, em 95), à tarde, antes de ir para o Mackenzie, encontrei Antunes sentado no sofá que havia no saguão, acompanhado de Portella, Geraldinho e outros atores do que se poderia chamar seu elenco fixo. Sentei-me por perto e escutei um pouco da conversa, que era descontraída.
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Melo interpretando Macbeth em Trono de Sangue |
Eu levava comigo um gravadorzinho de fita-cassete com que pretendia gravar um trabalho de faculdade, saindo de lá, e quando eles se levantaram para entrar, eu abordei Antunes. Com a humildade de um vassalo perante o suserano - o diretor tinha a fama de ser uma pessoa difícil - pedi-lhe uma pequena entrevista para o diretório acadêmico da faculdade. Uma mentira que apliquei ao longo dos anos com bastante sucesso, já que eu nunca pertenci ao diretório, e mesmo que pertencesse, uma conversa com Antunes estava meio distante do universo de Propaganda e Marketing. Para minha surpresa, ele aceitou e se sentou no mesmo lugar onde já estava. Não tinha nada de difícil. Era uma pessoa fácil e gentil, desde que o interlocutor falasse sua língua. Sentei-me a seu lado, completamente aturdido, porque não pensei que ele aceitaria, e comecei a disparar perguntas sobre tudo aquilo que pudesse pensar no momento.
Foi uma conversa genérica. Sem maior repertório para poder encarar um totem como Antunes, conduzi o papo pelo momento atual do teatro brasileiro, os autores e diretores de sua predileção, sua relação com Shakespeare e etc. Desnecessário comentar a paixão causticante com que expendia seus conceitos, um mais brilhante do que o outro, sobre o palco. Era um gênio do teatro falando. Conversamos por uns quarenta minutos, mais ou menos, e ele explicou que teria que voltar para o ensaio. Agradeci e abracei-o com o coração transbordando de alegria e entusiasmo. Prestes a entrar no teatro ele se virou para mim: "Você não me disse teu nome". "Bernardo". Ele brincou: "Bernardo? Ahhh... quem vem lá? Bernardo?" Mergulhado em Shakespeare graças aos filmes de Olivier, Welles e Brannagh, e no Brasil, graças a pessoas como ele, Luis Melo e Antonio Fagundes, reconheço a primeira cena de Hamlet e respondo, de um salto: "Responde tu primeiro! Viva o rei!" Ele sorriu e entrou. Saí do SESC ébrio de satisfação, trêmulo, como uma garrafa de nitroglicerina que foi agitada.
Mais do que por sua gigantesca contribuição às artes cênicas, mais do que por ser, junto a Flávio Rangel, o maior diretor de teatro que o Brasil já teve, é assim que vou lembrar de Antunes. Como alguém que deu uma entrevista a um jovem sem sequer saber seu nome. Que não se importou com o fato de eu estar amplamente despreparado para entrevistar alguém como ele. E que ao invés de me mandar à merda, que é algo que ele poderia tranqüilamente ter feito, estando no meio de um ensaio, me viu pelo que eu era: um jovem curioso, pronto para ser ensinado, cheio de vontade de aprender mais sobre aquilo do qual ele foi um de nosso maiores mestres.
Obrigado por TUDO, Antunes!
Obrigado! (3/5/2019)
RUBENS EWALD FILHO (1945/2019)
Cresci vendo Rubens Ewald no antigo Jornal Hoje falando sobre cinema, mas foi só por volta dos dezessete anos, quando desenvolvi uma obsessão pelo Oscar, suas cerimônias e seus premiados, que realmente pude constatar o quilate do cinéfilo que ele era. Um amigo me deu um número especial de uma publicação qualquer sobre cinema falando tudo sobre o prêmio. O autor: Rubens. Devorei aquela revista e praticamente decorei seu conteúdo. Foi uma espécie de guia para tudo aquilo que eu desejava (e precisava) assistir, em minha nascente cultura cinematográfica. Ele comentava exatamente aquilo que merecia ser comentado, não se alongava demais, era objetivo e honesto; aqui e ali criticava o que julgava que deveria ser criticado, e o fazia com um conhecimento tão profundo, tão depurado, que era impossível não respeitar sua opinião, e, no mais das vezes, concordar com ela.
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Leonard Maltin |
A chegada da TV a cabo no Brasil - nessa mesma época - acabou representando um segundo auge de Rubens. Contratado pela TVA ele ampliou aquilo que já fazia com a Globo e multiplicou por dez sua atividade como comentarista e entrevistador. Passava pelo menos metade do ano viajando o mundo, participando de festivais e entrevistando todos os atores, atrizes, diretores e figuras de maior ou menor importância, no mundo cinematográfico. Conhecido e reverenciado no meio, não havia celebridade que lhe fechasse as portas. Pelo contrário; foram incontáveis as vezes em que artistas demonstraram sua admiração, boquiabertos, com a cultura oceânica de Rubens. Me pergunto sobre o destino desse acervo da TVA (que se não me engano pertencia à editora Abril), porque há entrevistas antológicas feitas por ele, que não podem ser perdidas.
Anos depois repeti a dose; estava escrevendo um texto sobre Guarnieri e liguei para ele a fim de perguntar sobre a versão de Éramos Seis da Tupi, que ele escreveu em parceria com Silvio de Abreu. Mais um par de horas da melhor prosa, e foi bem na época do lançamento da Coleção Aplauso, então falamos de tudo e de todos, no teatro e no cinema. Várias vezes trombei com ele em teatros ou eventos. A última vez foi no Persona em Foco de Othon Bastos. A simplicidade de sempre. Desceu do automóvel, na Cultura, colocando a camisa que usaria durante a gravação. Cumprimentou a mim e a quem estivesse por perto como um velho amigo.
Era um grande mestre. Perdemos todo com sua partida. Ele fará muita falta. A frase foi banalizada pela utilização excessiva, sobretudo com gente que não fará falta nenhuma. No caso dele a frase não podia ser mais tristemente real. Ele fará MUITA falta.
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