quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Hamlet: duas tentativas frustrantes

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O Hamlet de Diogo Vilela
O Hamlet de Diogo Vilela

Existem momentos que são esperados ansiosamente por aqueles que vão com freqüência ao teatro. Paulo fazendo Lear foi um, assim como Fagundes fazendo Cyrano, Fernanda fazendo Arkádna, Dória fazendo Harpagon, e por aí vai. Na minha lista particular, o Hamlet de Diogo figurava em segundo lugar, perdendo apenas para a curiosidade que eu tinha por ver Paulo interpretando o Rei Lear. Satisfeita essa curiosidade, Diogo pulou gloriosamente para o primeiro lugar. Nos bastidores de Solidão, a Comédia, em 1994, perguntei a Diogo quando é que viria seu Hamlet. Ele brincou, contou-me do comentário de Miguel Falabella, de que um Hamlet de Diogo seria um Hamlet mulato, e terminou dizendo que a peça evidentemente estava em seus planos, como está sempre nos planos de qualquer grande ator, mas para breve.

A espera foi cruel. Passaram-se sete anos até que o projeto se transformasse em realidade. Quando a peça chegou a São Paulo, em pequena temporada no Teatro Alfa-Real, comprei o ingresso imediatamente. Poucos dias antes assistira a entrevista de Diogo no programa de Jô Soares, divulgando o espetáculo. Levava consigo o ator Luiz Artur, que interpretava Laerte, e juntos fizeram uma pequena demonstração do que seria o duelo de Hamlet e o irmão de Ofélia, no último ato. A entrevista, longe de me entusiasmar, me assustou um pouco. Luiz Artur era menos do que um amador, estava inteiramente cru. Parecia jamais ter feito teatro em sua vida. Comecei a temer pelo que seria o elenco desse Hamlet, e infelizmente não me enganei.

O Hamlet de Diogo foi, para mim, uma espécie de implosão. Um anti-clímax. Marcus Alvisi, tão competente e afiado para a direção de espetáculos vencedores como Solidão, a Comédia e Navalha na Carne, apresentou uma montagem ingênua e superficial para o Hamlet traduzido por Millôr Fernandes. Não sei se o termo exato seria "ingênuo", mas não consegui sopitar um completo espanto na escolha grosseiramente equivocada dos atores. Vamos a eles:

Ricardo Petraglia é um ótimo ator, mas não o achei adequado para Cláudio. Simplesmente não me convenceu. Seu jeito gaiato, de malandrão sedutor, não se coadunava com a gravidade do personagem shakespeariano. Alvisi deveria ter trabalhado nisso, fazendo com que Petraglia perdesse uma série de maneirismos contemporâneos demais. Não trabalhou. Quanto à Rita Elmôr, que interpretou Ofélia, não sei ao certo quais seus trabalhos anteriores (uma novela no SBT, acho), mas ela certamente não estava à altura da tarefa. Sua entrada, na cena da loucura, criou um certo efeito pela careta que fez, misturada à maquiagem pesadíssima. Foi seu único momento mais ou menos memorável. O trabalho de Luiz Artur eu prefiro nem comentar.

Susana Faíni é uma atriz competente. Sua Gertrude foi razoável, mas dentro de um elenco tão falho, ela não podia fazer milagres. O mesmo se pode dizer do experiente Antônio Pedro, cujo Polônio passou em brancas nuvens. Bom mesmo foi o Horácio de Fernando Eiras. Nunca tinha visto Fernando no teatro, e para dizer a verdade, seu trabalho na televisão nunca me impressionou. Pois gostei bastante de seu Horácio.

E por fim, Diogo. Seu Hamlet foi bárbaro. Ele comentara no programa de Jô que a densidade depressiva do personagem andava afetando-o, nos últimos tempos. De fato, seus olhos não negavam esse estado de espírito. Em seu primeiro monólogo já fulminou o público com os olhos injetados, uma expressão de destruição, de alma em escombros. E seguiu brilhantemente pelo resto do espetáculo, talvez com um ou outro vício de interpretação (provável herança da TV Pirata) que poderia ter sido facilmente aparado por Alvisi. Em geral ele se desincumbiu exemplarmente da tarefa. Diogo nasceu para fazer Hamlet. Sempre possuiu o talento e a ecleticidade imprescindíveis para uma boa performance. Em português claro, ele é melhor ator do que todos os Hamlets que tivemos nos últimos 20 anos. Mas uma andorinha só não faz verão. Shakespeare não costumava escrever peças onde apenas um personagem brilhava, e um ator perfeito, embora o protagonista, não foi suficiente para que o espetáculo ficasse bom. Também é freqüente o naufrágio de espetáculos que contam com um bom elenco, mas sem um diretor que os conduza.

Diogo merecia um elenco melhor e um diretor com mais familiaridade e vivência com Shakespeare. O que não teria sido o Hamlet de Diogo nas mãos de Antunes Filho? O que não teria sido um Cláudio de Walmor Chagas (ele próprio um célebre Hamlet do passado)? Uma Gertrude de Marília Pêra? Uma Ofélia de Giulia Gam, Denise Fraga ou Maria Luisa Mendonça? Um Polônio de Laerte Morrone, Guarnieri ou do próprio Antônio Pedro, dirigido por alguém que lhe soubesse fazer aflorar o enorme talento?

É costume dos atores ingleses voltar aos papéis shakespearianos que já interpretaram em outras épocas, pela razão específica de enriquecer a performance com a experiência da idade. Olivier repetiu nos anos 50, com excelentes resultados, o Coriolano e o Macbeth que fizera com inexperiência e sucesso tímido nos anos 30. Gielgud interpretou Hamlet 4 ou 5 vezes, ao longo de sua vida; Próspero e Lear ele também repetiu mais de 3 vezes. Espero com todo meu coração que Diogo volte a Hamlet. O ator e o personagem merecem.

O Hamlet de Marco Ricca
O Hamlet de Marco Ricca

O diretor Ulysses Cruz andava num verdadeiro frenesi shakespeariano no segundo lustro da década de 90. E foi justamente a seqüência de três peças do bardo em três anos que jogou água fria nesse frenesi. Em 1995 Ulysses dirigiu uma estupenda montagem de Péricles, Príncipe de Tiro, no SESI de São Paulo, tendo Leonardo Brício no papel-título. O prestígio e o sucesso sem precedentes do espetáculo resultaram num convite de Paulo Autran para dirigir seu esperado Lear, depois de baldados os esforços do velho mestre em convidar um diretor estrangeiro. A montagem foi irregular; Paulo estava bem mas o elenco coadjuvante aniquilou a peça. Até mesmo os cenários de Hélio Eichbauer mostraram-se menos inspirados do que o normal. Em 1997 Ulysses partiu para o Hamlet de Marco Ricca, com tradução do ator Marcos Daud. Assisti a peça no Sérgio Cardoso, teatro que, ao contrário do Alfa, tem espaço de sobra para abrigar um espetáculo dessa magnitude.

Estava acostumado a ver Ricca em propagandas de barbeador até que o assisti com Walderez de Barros em uma adaptação da Gaivota de Tchekhov. Não cheguei a me impressionar, até porque os olhos de toda a platéia não se desgrudaram de Mayara Magri do início ao fim, mas percebi ao menos que Ricca era capaz de sustentar um protagonista difícil como Treplev. Vendo seu Hamlet apenas acrescentei um adendo à mesma impressão: ele era capaz de sustentar um personagem difícil como o príncipe dinamarquês, mas não passava disso. Sua interpretação foi descolorida, em termos dramáticos. O rosto manteve a mesma expressão de susto do início ao fim, a voz – quiçá castigada pelo cigarro – teve modulação mínima e não se viu a emoção que ajudasse o público a discernir entre a normalidade, os falsos transes de loucura e os momentos de verdadeira tristeza de Hamlet.

Ernani Moraes foi um excelente Cláudio. Já o vira anos antes em verdadeiro tour de force com Denise Weinberg na Megera Domada do Tapa e passei a admirá-lo ainda mais. Ernani, dono de uma das mais belas vozes do teatro e da televisão no Brasil, domina como poucos os eventuais problemas advindos de tal qualidade. Daniel Boaventura, por exemplo, não consegue se livrar dos cacoetes de locutor quando interpreta e acaba imprimindo uma canastrice quase que involuntária a seus personagens, obstáculo que Moraes transpõe com facilidade. Na cena dos atores, quando a peça encenada desmascara o crime cometido pelo irmão do rei, lembro-me do impacto de Ernani levantado-se e dizendo, com perfeita calma, o “Preciso de luz” (estou citando de memória, não lembro mais como foi traduzido o give me some light do original), para em seguida, ante o suspense da platéia, substituir o “away” do texto pela repetição de “luz”, num grito arrepiante.

Mariana Muniz não chegou a comprometer como Gertrude, mesmo sendo, efetivamente, uma bailarina consagrada, e não uma atriz, e Rubens Caribé – conforme a crítica consignou, em uníssono, na época – de fato exagerou na intensidade de seu Laerte. Suas gritarias não ajudaram em nada o público a compreender a tragédia do estudante honesto e honrado que chega a seu país para encontrar o pai assassinado e a irmã enlouquecida. A gaúcha Júlia Feldens, na época com apenas 19 anos, foi uma grata surpresa. Inexperiente, se agarrou com unhas e dentes à cobiçadíssima (e extremamente perigosa) oportunidade de começar sua carreira fazendo Ofélia. E não decepcionou. À sua voz talvez ainda faltassem algumas gamas a serem exploradas, mas em geral ela esteve muito bem. Do Horácio de Plínio Soares eu não tenho a mais remota recordação.

O Polônio de Marcos Daud foi simplesmente ridículo e é nesse descuido que jaz meu problema com a direção de Cruz. Por que um ator jovem e canastrão é chamado para interpretar um maravilhoso personagem mais velho como o pai de Ofélia e Laerte? Daud estava envelhecido artificialmente da maneira mais tosca e sem graça. Falava com voz do detetive Ted Tigre e no fim da cena com Reinaldo, ele pegava uma caixa de sucrilhos Kellogs e começava a comer. Uma idiotice completamente sem sentido que fez o público rir e retirou qualquer seriedade da cena seguinte, uma das mais dramáticas da peça, em que Hamlet conversa com o fantasma de seu pai. Uma sabotagem de seu próprio trabalho, porque a aparição do fantasma foi a melhor coisa bolada por Ulisses Cruz; valendo-se do fato de que o pai de Hamlet usava o capacete de sua armadura e não podia ser identificado, Cruz criou plataformas ao redor do cenário e depois de fazer o fantasma andar por uma, utilizava outro ator vestido da mesma forma e andando por outra, o que criou a interessante ilusão de que o fantasma era onipresente.

Com todos os seus defeitos, sem emocionar quase nunca (um pouco, talvez, na cena da loucura de Ofélia), o Hamlet de Marco Ricca ainda foi ligeiramente superior ao de Diogo Vilela. Diogo é infinitamente mais competente e foi um melhor Hamlet, mas em termos de montagem, Ulysses Cruz ainda levou a melhor, mesmo em um momento particularmente baixo de sua carreira. E que eu saiba, não voltou mais a Shakespeare desde então. Fica a lição: o bardo não pode ser feito em escala industrial. Na Inglaterra talvez seja possível; no Brasil, não.

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