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Ernesto Rossi |
Vamos conhecer, enfim, a arte e o gênio que ilumina o palco, entusiasmando o povo!
Quando Ernesto Rossi chegar poderemos dizer afoitamente que o teatro brasileiro está aberto e que nos deparamos, finalmente, com a pia batismal da inspiração e dos louros! (Diário do Rio de Janeiro, 19/3/71)
Aquele que move com um olhar o povo, com a palavra elétrica e inspirada as almas absortas na luz do seu incomparável gênio; o intérprete de Shakespeare e Alfieri; o farol da arte moderna digna-se de nos iluminar um pouco! (Mundo da Lua, 18/3/71)
Ernesto Rossi significa a encarnação do ideal artístico nas suas mais caprichosas particularidades. Neste momento é o primeiro trágico, digamos com mais acerto, é o primeiro artista do universo. (Diário do Rio de Janeiro, 12/4/71)
Artistas como o Sr. Rossi aparecem no mundo com intervalos seculares, como estes astros errantes que visitam a Terra em longuíssimos períodos, espalhando o assombro e enchendo de admiração os povos, que neles vêem uma prova da grandeza de Deus. (Diário de Pernambuco, 28/4/71)
É Hamleto, a dúvida! É Romeu, o amor! É Orestes, o mistério! É Carnioli, o ceticismo! É Kean, o gênio! Proteu admirável! Corre sem o menor tropeço das ondas de sangue em que a tragédia banha a sua clâmide flutuante, aos raios da lua que predizem os sonhos divinos, e à careta de Pourcegnac que descobre o pincel arisco de Molière! (Diário do Rio de Janeiro, 7/5/71)
Ernesto Rossi, sem a mais leve sombra de contestação e de discussão, é o primeiro artista que tem pisado o palco brasileiro, e, na opinião valiosa da crítica universal, o primeiro artista trágico do mundo. (Diário do Rio de Janeiro, 10/5/71)
Eu sou dos últimos. Ainda o não vi aqui mas não me é desconhecido, e espero ir vê-lo para poder ter o gostinho de dizer a algum ratão de mau gosto: não viste o Rossi? Pois não és digno do grande mundo. (Diário de Notícias, 10/5/71)
A estréia de Ernesto Rossi é o maior acontecimento do teatro brasileiro. A Ristori foi a luz predecessora; a realidade da luz é Ernesto Rossi. (Diário do Rio de Janeiro, 11/5/71)
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João Caetano dos Santos |
Em 24 de agosto — data aziaga para nosso país — de 1863, pela manhã, o coração de João Caetano parou de bater, aos 55 anos. Foram várias mortes em uma só. João era a um tempo o primeiro, o maior e o único ator dramático do país. Era diretor de sua companhia, ou “ensaiador”, conforme a nomenclatura da época, seu próprio empresário, pioneiro na montagem de peças de Shakespeare no Brasil, criador benemérito de uma escola de teatro, e tantas outras coisas. Nos séculos XVIII e XIX, grandes atores assumiam foros de divindade, eram referidos como humanos de talento superior, de personalidade transcendental, e vetores da pena genial de poetas como Shakespeare e Racine. Naquele nascedouro da arte dramática em paragens tropicais, João Caetano era um semi-deus, tivesse ele, de fato, o talento que lhe creditavam, ou não. Por sinal, morreu pobre e pouco antes a Câmara Municipal do Rio retirou a subvenção ao São Pedro, teatro onde trabalhava sua companhia. Mas enquanto esteve no palco, reinou soberano, sem rivais.
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Furtado Coelho |
É bem verdade que em meados da década anterior surgira no cenário teatral o polivalente Furtado Coelho. Tal qual Caetano, Furtado era excelente ator, um estudioso do assunto, empresariava sua companhia e deve-se a ele a transição do período “romântico” do nosso teatro, simbolizado por João Caetano, para o “realismo”, que ele difundiria a partir de então.
Além disso Furtado era dramaturgo, compositor e sua companhia foi um celeiro de talentos onde, entre outros, iniciou sua carreira a maior atriz brasileira do século XIX, a baiana Ismênia dos Santos, e onde se popularizou sua contemporânea e sucessora, a maranhense Apolônia Pinto. Os primeiros anos da carreira de Furtado coincidiram com a decadência de João Caetano e o fim da década de 60 o encontra como o principal nome masculino de nosso teatro.
Só que ele tinha uma desvantagem irremediável numa eventual comparação com Caetano: era português. Nascido em Lisboa, em 28 de dezembro de 1831, Luiz Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado Coelho viera de Portugal justamente para fazer teatro, o que não podia em seu país por conta de parentes famosos, para os quais a lide teatral era um constrangimento. No Brasil seu talento foi rapidamente reconhecido, mas ele não alcançaria jamais o status mitológico de João Caetano, fosse tão bom quanto ou quiçá até melhor do que o brasileiro.
A classe artística ficou anos enlutada pelo desaparecimento do notável pioneiro de Itaboraí. Em maio de 1869 isso começou a mudar. O empresário italiano Luigi Cesare Magi anunciou na imprensa do Rio de Janeiro — capital do Império — que a celebérrima atriz italiana Adelaide Ristori preparava-se para uma temporada de dois meses no Teatro Lyrico Fluminense.
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Anúncio da temporada de Ristori, maio de 1869 |
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Ristori na "Medéia", de Legouvé, 1858, foto de Andre Disderi |
Ristori chegou ao Rio em 19 de junho de 1869. Pelos dois meses — julho e agosto — que durou sua turnê brasileira, ela apresentou um eclético repertório e maravilhou público e crítica. O Lyrico Fluminense ficou abarrotado em todas as suas performances e os articulistas encarregados do comentário teatral nos diários do Rio despejaram uma verdadeira pletora dos mais hiperbólicos elogios sobre a italiana. Sua simples presença no nosso modesto império foi uma injeção de ânimo no teatro nacional, que passava por fase relativamente anódina. Ela foi a Medéia de Ernest Legouvé, a Francesca de Rimini de Silvio Pellico, a Mirandolina da Locandiera de Goldoni, a Pia de Tolomei de Carlo Marengo e várias outras. Triunfo após triunfo. Para melhorar, Pedro II, notório amante das Belas Artes, bateu ponto no Lyrico por quase toda a temporada, ofereceu uma recepção à Ristori no Palácio Imperial, em São Cristóvão — atitude que provocou reações negativas por parte de alguns carolas embolorados que não concebiam o Imperador dando festa para uma atriz — além de tornar-se pen pal de Ristori até três meses antes de morrer, em 1891.
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Charge do mestre Ângelo Agostini sobre a chuva de palmas e ovações na temporada de Ristori (A Vida Fluminense, 3/7/1869) |
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Pinheiro Chagas |
Nesse ínterim, Furtado Coelho decidiu sair do Theatro Gymnasio — cuja direção passou para o ator cômico português José Antônio do Valle — e construiu seu próprio teatro, o luxuoso São Luiz. A momentosa inauguração da nova sala ocorreu no dia 1º de janeiro de 1870, com direito à presença de toda a família imperial. A peça escolhida foi o drama em cinco atos A Morgadinha de Val-Flor, do português Manoel Pinheiro Chagas (1842/1895), amigo de Furtado. O texto estreara em Portugal em abril do ano anterior com grande sucesso, trazendo como protagonista a famosa atriz Emília Adelaide. No São Luiz, a morgadinha (herdeira, rica) Leonor foi interpretada com igual êxito por Ismênia dos Santos, que ia aos poucos galgando o posto de atriz mais importante do teatro brasileiro. No segundo papel feminino, a jovem Apolônia Pinto, aos dezesseis anos, recém chegada do Maranhão. A título de curiosidade, eis o que diz, profético, um crítico, sobre a adolescente: “Talento simpático, moça interessante, diabinho, a quem o estudo abrirá um brilhante futuro, e a quem os dotes naturais dão desde já lugar distinto na difícil arte dramática”. (Sl, 23/1/1870)
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Ismênia dos Santos |
Meses depois, em meio à casa cheia, críticas positivas e os melhores augúrios, Furtado e Ismênia se desentenderam.
Embora uma pessoa agradável, Furtado era temperamental e já tivera um rompimento estrepitoso com o cômico Francisco Corrêa Vasques (1839/1892) por questões financeiras, em 1867. Não consegui apurar o motivo da briga com Ismênia, mas em se tratando de duas estrelas, uma consagrada e a outra em franca ascensão, imagina-se que tenha sido ego, dinheiro, orgulho ferido, ou alguma combinação dos três.
Embora uma pessoa agradável, Furtado era temperamental e já tivera um rompimento estrepitoso com o cômico Francisco Corrêa Vasques (1839/1892) por questões financeiras, em 1867. Não consegui apurar o motivo da briga com Ismênia, mas em se tratando de duas estrelas, uma consagrada e a outra em franca ascensão, imagina-se que tenha sido ego, dinheiro, orgulho ferido, ou alguma combinação dos três.
Como tanto o teatro quanto a companhia pertenciam a Furtado, Ismênia não teve outra alternativa senão arrumar suas coisas e ir embora. Passou quase um ano parada e se transferiu para a companhia de Jacintho Heller na Phenix Dramática. Furtado não se amofinou. Inteligente, bem relacionado e com atilado tino comercial, pegou o primeiro navio e foi para Portugal procurar uma atriz que pudesse substituir Ismênia à altura.
Em meados de 1870 surgiu na imprensa carioca uma notícia que provocou frêmito aos amantes das artes cênicas, tanto aos que desejavam ver ao vivo sua quintessência quanto aos que já o haviam feito na platéia de Ristori: “Consta-nos que brevemente chegará a esta corte o célebre trágico Rossi” (DN, 20/8/70).
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Diário de Notícias, 20/8/1870 |
Rossi? “O maior trágico do mundo”? “O artista semi-deus, aquele que por toda a parte por onde tem passado tem deixado um rasto de glórias e de luzes”? “O aluno querido de Melpôneme e Thalia, que uniram-se em um celestial amplexo para lhe imprimirem na fonte um beijo de imenso afeto, e para lhe entrançarem a esplêndida coroa de verdadeiro filho da arte”? Seria possível? Rossi, que nasceu em Livorno, em 27 de março de 1827. Aquele a quem seu pai, veterano do exército de Napoleão, destinava para o mundo das ciências jurídicas, mas que abandonou a universidade de Pisa para entrar na companhia de Gian Paolo Calloud, Letizia Fusarini e Cesare Marchi. Lá conheceu seu grande mentor, Gustavo Modena. Interpretou coadjuvantes e recebeu ovações dos públicos de Gênova e Turim. Esse Rossi. Aquele que vinte anos antes entrara para a “Compagnia Reale Sarda” ao lado de Adelaide Ristori.
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Gustavo Modena |
Nessa companhia teve algum tipo de epifania, contou um cronista italiano da época, transcrito no Diário do Rio de Janeiro de 12 de abril de 1871 em texto divertido e fantasioso: “Foi então que, levantando a cabeça para o céu, pediu o imenso, porque só o imenso podia satisfazer a sua alma de fogo: estudou, estudou, estudou com delírio; via nas trevas das suas noites um grupo de soberbas estátuas, às quais só faltava o gênio de um homem para dar-lhes a vida: o pálido Hamleto, o selvagem Othello, o brioso Cid, o apaixonado Paulo e o lânguido Sardanapalo esvoaçavam-lhe na mente entusiástica, e ele estudava os semblantes, animava os olhares, suplicava, estorcia-se, lutava, chorava... e afinal surgiu o artista!” A partir de então formou sua companhia e ganhou o mundo. Esse, o Rossi que se preparava para nos visitar. Certo, Ristori viera pouco antes, mas era mulher. Num mundo inteiramente patriarcal, por mais afamada que fosse Ristori, equivalia a receber uma célebre primeira dama, ou uma duquesa, mesmo que Rossi tivesse sido seu aprendiz. Já no caso dele, era a visita do nº1, o primus inter pares, o grande rei, o maior de todos.
Assim começou o ano de 1871: o Teatro Lyrico prometia Rossi para o fim de abril; Furtado Coelho voltou de Portugal e anunciou a vinda de ninguém menos do que a própria Emília Adelaide para ser a titular feminina do São Luiz por uma temporada; a horrenda Guerra do Paraguai estava terminada, os debates que culminariam com a aprovação da Lei do Ventre Livre andavam avançados e tudo parecia bem.
Em fevereiro a alegria acabou. No dia 7, durante uma viagem à Áustria, morreu a princesa Leopoldina, com apenas 23 anos, vítima da febre tifóide. O imperador teve quatro filhos; Afonso e Pedro morreram ainda crianças. Com a morte prematura da doce Leopoldina, segunda na linha de sucessão ao trono, a princesa Isabel se tornou a única herdeira. Pedro II e a imperatriz Tereza Cristina ficaram de luto pela filha, passaram a maior parte daquele ano viajando e se ausentaram de toda a temporada artística.
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Luiz Guimarães Junior |
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Talma, por Louis Boilly |
A partir de fevereiro os leitores de jornais e revistas — única mídia da época — passaram a ser bombardeados com notícias sobre a chegada de Rossi. E para cada dez artigos sobre o italiano, havia um ou dois, com igual alegria, comentando a vinda de Emília Adelaide. Era um verdadeiro banho de incenso:
Esse amável Titão, esse adorável Sansão vem ver-nos de hoje a pouco tempo. (...) O repertório de Ernesto Rossi é esplêndido. Shakespeare, Dumas, Soumet, Delavigne, Byron, Hugo, são as escadas vivas, palpitantes de gênio e ilustração, por onde o trágico italiano tem subido pouco a pouco à imortalidade. (...) Do banho lustral que o gênio com a mão providencial faz jorrar sobre o povo, é que a inteligência e o coração saem puros como o amianto das labaredas purificadoras. Isto não é mais do que um meio de mostrar ao público a alegria de que me sinto possuído pela vinda de Rossi. Peço ao céu forças para aplaudi-lo de todas as formas, quando o monstruoso artista pisar o palco brasileiro. (ML, 18/2/71)
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LeKain |
“Rossi é o Talma italiano” — referência ao célebre ator francês François-Joseph Talma (1763/1826) — era frase recorrente na imprensa. Embora ninguém tivesse visto nenhum deles, as comparações corriam soltas, então aqui e ali veríamos comentários como “discípulo de Modena”, “continuador de LeKain” (Henri-Louis Caïn, 1729/1778), “vencedor de Frédérick Lemaître” (1800/1876), e assim por diante. Outra constante nos artigos de boas-vindas a Rossi é uma satisfação particular da intelectualidade por saber que a temporada do italiano significava o primeiro contato do público com a dramaturgia universal, tal qual ela deve ser conhecida. Ou seja, excetuando textos comerciais contemporâneos e as peças apresentadas por Ristori — em cujo repertório, aliás, constava o Macbeth, que não foi encenada — o Brasil só conhecia um risível pastiche das dramaturgias inglesa, francesa e alemã, que eram as adaptações franco-portuguesas levadas por João Caetano.
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Frédérick Lemaître |
Logo, havia respeito pelo saudoso artista e pelo seu esforço em tornar palatáveis ao grande público obras de difícil compreensão, que requeriam um mínimo de cultura. Por outro lado, havia também a sensação de que aquilo, efetivamente, não era Shakespeare, ou não era Goethe, ou não era Schiller, e etc. Com Rossi, essa espera terminaria:
Que ventura! A mocidade estremecerá de vida e de loucura perante o portento do palco italiano! Compreenderemos Hugo, Dante e Shakespeare! Como essas fabulosas deusas que nos rezam as lendas, Rossi com um gesto, um olhar, uma palavra abrirá a nossas vistas deslumbradas o palácio imenso da arte, onde as palavras e os pensamentos dos gênios sairão em torrentes de fogo e de diamantes! (...) A Ristori foi a deusa a cujos pés caiu em peso a platéia fluminense. Pois bem! Júpiter vem substituir Minerva, com a multidão dos raios soberanos prontos a fugir-lhe dos olhos e da alma divinizada! (DRJ, 19/2/71)
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Eduardo Brazão |
Ah!, afinal vamos entender Dante! A voz do artista dileto das grandes musas conduzir-nos-á, através das sombras e dos gemidos, não só aos mistérios do poema divino, como ao âmago do coração donde surgiu a Divina Comédia! (DRJ, 7/5/71)
Na segunda quinzena de março Emília Adelaide chegou ao Brasil. Sua estréia no São Luiz foi marcada para o dia 26, com — é claro — o sucesso certo de A Morgadinha de Val-Flor. Furtado provou mais uma vez seu talento raro para a escolha de elencos, considerando que pouco antes já trouxera para sua companhia outro português que em pouco tempo se tornaria exponencial: Eduardo Brazão.
Na segunda quinzena de março Emília Adelaide chegou ao Brasil. Sua estréia no São Luiz foi marcada para o dia 26, com — é claro — o sucesso certo de A Morgadinha de Val-Flor. Furtado provou mais uma vez seu talento raro para a escolha de elencos, considerando que pouco antes já trouxera para sua companhia outro português que em pouco tempo se tornaria exponencial: Eduardo Brazão.
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Anúncio da estréia da temporada de Emília Adelaide |
Enquanto os portugueses se preparavam para uma bela temporada, o empresário Lourenço Perrini, responsável pela vinda de Rossi, apresentou companhia e repertório à imprensa. O trágico encabeçava o elenco tendo Celestina Paladini como primeira atriz e Giacomo Brizzi como segundo ator. Para as peças cômicas — costume da época: encenar uma farsa ou comédia de um ato logo após a tragédia ou drama apresentada pelo elenco principal — estava Leopoldo Vestri, que de vez em quando também tomava parte do elenco principal.
O resto do elenco era quase que completamente familiar, no sentido de que atores e atrizes eram irmãos ou casados. Atrizes: Antonietta Zammarini, A. Cottin (seu primeiro nome não consta em lugar algum, sendo ela sempre referida como “Sra. A. Cottin” por ser esposa do ator Achilles Cottin), Modesta Sartoris, Erminia Belli-Blanes, Emma Della Setta, Adelaide Perucchetti, Carolina Melzi, Pia Beffa, Eugenia Rossi, Julieta Serafini e Isabel Cavara. Atores: Raphael Rigatti, Ercole Cavara, Ludovico Mancini (que viera dois anos antes com Ristori e voltava agora com Rossi), Achilles Cottin, Henrique Rossi, Flavio Andó, Virginio Vezzosi, Carlo Perucchetti, Eugenio Casilini, Luiz Mazzoni, Hector Panizzoni, Paolo Belli-Blanes, Eduardo Della Seta, Cesar Canepa, Carlo Monari, Raphael Beffa, J.B. Pisani, Carlo Melzi e Arnaldo Cottin.
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Anúncio da temporada de Rossi, 20/3/1871 |
O repertório era em si um espetáculo. Tinha quase três vezes o número de peças da companhia de Ristori e trazia o supra-sumo da dramaturgia universal. Só de Shakespeare havia cinco tragédias: Hamlet, Coriolano, Romeu e Julieta (ou Julieta e Romeu, como a chamou seu tradutor), Macbeth e Othello e um drama, O Mercador de Veneza. Quatro tragédias de Alfieri, duas de Schiller, quatro dramas de Alexandre Dumas, textos de Dante, Byron, Corneille, Goethe, Victor Hugo, comédias de Goldoni, Molière e dezenas de outras peças.
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Anúncio da temporada de Rossi, 11/4/1871 |
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Júlio César Machado |
Rossi naquele momento concluía uma temporada gloriosa em Portugal. Os jornais do Rio transcreviam artigos sobre os triunfos do ator, e um desses comentários era do escritor português Júlio César Machado (1835/1890), que deixou consignadas suas impressões da primeira noite de Rossi interpretando Othello em Lisboa:
Desde as primeiras cenas do Othello houve verdadeiro interesse que foi aumentando até se converter em delírio do terceiro ato em diante. Com que intensidade de estudo, com que variedade de tons Rossi representou o seu papel! Com uma palavra, com um acionado, com um movimento de fisionomia, com um silêncio, faz-nos o calafrio, o tremor de comoção que indica a passagem do sublime. Nunca o nosso público ouviu linguagem tão clara, nem viu ator que abrisse mais de par em par a janela que deita para a alma! (DRJ, 19/2/71)
No fim de março Rossi foi se despedir do rei de Portugal, D. Luiz. O monarca escreveu uma carta de próprio punho a Pedro II, recomendando-o ao trágico, e deu-a a Rossi. Ele embarcou em um paquete (navio de luxo a vapor) da Pacific Steam Navigation Company em 30 de março e esperava-se que a viagem de navio durasse cerca de vinte dias. Nesse período a imprensa não fez outra coisa a não ser preparar o público fluminense para sua chegada.
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A estréia de Balbina Montani — mãe de Abigail Maia e avó de Lucília Peres — na companhia do ator Germano, no S. Pedro de Alcântara |
Não se pode dizer que o teatro brasileiro tivesse uma
identidade, naquele momento, seja em termos de atores ou de autores. Não
obstante, a cena teatral era bastante rica no Rio de Janeiro. Salinhas de
espetáculo, grêmios recreativos e locais menores onde encenações eram
realizadas existiam por toda parte. Teatros, efetivamente, com platéia e
camarotes, havia sete, com intensa atividade o ano todo. O mais antigo deles
era o S. Pedro de Alcântara, inaugurado em 1813 com o nome de Real Theatro de
São João. Incendiou-se uma vez em 1824 e duas vezes durante a década de 50,
enquanto esteve sob a direção de João Caetano. Em 1871 estava ocupado pela
companhia do ator Germano Francisco de Oliveira (1820/1885). Famoso, e por um
tempo conhecido como rival de João Caetano, Germano era o único brasileiro a dirigir uma companhia no Rio, à época; também sabia cultivar
talentos e tinha uma companhia invejável, misturando novatos e veteranos
notáveis como o ator Galvão, a jovem Apolônia Pinto (solapada à companhia de
Furtado Coelho), o açoriano de 26 anos
João Augusto Soares Brandão, mais tarde conhecido pela alcunha de “o
Popularíssimo”, e Augusto Montani, entre outros. A esposa deste último, a
futuramente célebre como “atriz caricata” Balbina Montani, fez sua estréia no
teatro junto ao marido, precisamente em abril de 1871¹.
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O programa eclético do Gymnasio, anunciando "A Esfolhada", de Antônio Pinto Corrêa Junior, "Uma Fábrica de Casamentos", de Joaquim José Annaya e "Já ouvi espirrar este nariz", de Manoel José d'Araújo |
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José Antônio do Valle, o "ator Valle" |
O Gymnasio, fundado em 1832 com o nome de Theatro São Francisco de Paula, também hospedara a companhia de João Caetano na década de 40. Segundo a crônica, é o “berço do teatro nacional, a nascente da literatura dramática brasileira, apresentando os primeiros dramas da escola realista e, também, a primeira sátira (musicada) de um autor brasileiro”. Como já se viu, com a saída de Furtado Coelho da direção, ficou em seu lugar o ator Valle.
O Lyrico Fluminense, que recebera Ristori e preparava-se para receber Rossi, estava longe de ser um teatro à altura de figuras tão renomadas. Por se tratar de construção que deveria ser temporária, até a edificação de um grande teatro que representasse condignamente a capital do Império, ele foi fundado em 1852 com o nome de “Theatro Provisório”. Passou a ter sua atual denominação dois anos depois, e não obstante a estrutura deficiente e inúmeras reformas, abrigara ao longo dos anos temporadas de alguns dos maiores cantores líricos, atores dramáticos e concertistas do mundo. Pertencia ao governo e estava arrendado a Lourenço Perrini, empresário de Rossi.
O Lyrico Fluminense, que recebera Ristori e preparava-se para receber Rossi, estava longe de ser um teatro à altura de figuras tão renomadas. Por se tratar de construção que deveria ser temporária, até a edificação de um grande teatro que representasse condignamente a capital do Império, ele foi fundado em 1852 com o nome de “Theatro Provisório”. Passou a ter sua atual denominação dois anos depois, e não obstante a estrutura deficiente e inúmeras reformas, abrigara ao longo dos anos temporadas de alguns dos maiores cantores líricos, atores dramáticos e concertistas do mundo. Pertencia ao governo e estava arrendado a Lourenço Perrini, empresário de Rossi.
Outro “Lírico” cujo lirismo não transcendia o nome era o Alcazar Lírico, também conhecido em diferentes momentos por “Theatre Lyrique Française”. Foi inaugurado em 1859 por um francês radicado no Brasil, Joseph Arnaud, e tinha por objetivo reproduzir, em plenas paragens tropicais, o ambiente, a atmosfera e a linha de shows dos cabarés franceses, muito em voga na ocasião.
Arnaud alcançou seu objetivo. Pegando carona nas
popularíssimas operetas de Jacques Offenbach (1819/1890), nos anos seguintes o francês
trouxe para o Rio, com grande sucesso de público, os mais variados espetáculos
de can-can e performances de canto e dança onde se destacavam as roliças e
sensualíssimas atrizes, cantoras e dançarinas francesas que provocavam terror
às esposas e toda sorte de beatos e moralistas.
Para o romancista e dramaturgo Joaquim Manoel de Macedo, o local era onde “os velhos babosos, os maridos bilontras e a rapaziada bordelenga se davam rendez-vous todas as noites, para rentear as atrizes brejeiras e as cupletistas gaiatas que degelavam os mais idosos e rescaldavam os mais moços”. Em 1938 Procópio Ferreira fez análise bem mais equilibrada: “O Alcazar pertence à tradição boêmia galante do século passado (XIX). Era o ponto de reunião dos velhos elegantes e da mocidade curiosa, sendo por isso considerado pela família brasileira um antro de perdição” (Ferreira, 1979).
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"La Princesse de Trebizonde", uma das muitas operetas de Offenbach encenadas pelo Alcazar |
Para o romancista e dramaturgo Joaquim Manoel de Macedo, o local era onde “os velhos babosos, os maridos bilontras e a rapaziada bordelenga se davam rendez-vous todas as noites, para rentear as atrizes brejeiras e as cupletistas gaiatas que degelavam os mais idosos e rescaldavam os mais moços”. Em 1938 Procópio Ferreira fez análise bem mais equilibrada: “O Alcazar pertence à tradição boêmia galante do século passado (XIX). Era o ponto de reunião dos velhos elegantes e da mocidade curiosa, sendo por isso considerado pela família brasileira um antro de perdição” (Ferreira, 1979).
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A Phenix emcena "Theresa, ou A Órfã de Genebra", de Victor Ducange |
Em 1868 ele já se chamava Phenix e estava sob a direção de Vasques, que lá permaneceu por dois anos, até Heller assumir seu lugar. Ele era um bom empresário e a Phenix vivia um momento interessante, contando com ótimos atores como os próprios Heller e Vasques, Ismênia dos Santos e o hoje esquecido ator Arêas. Além desses havia o São Luiz, de Furtado Coelho, e no mês de junho seria inaugurado com uma companhia italiana de ópera o Theatro Pedro II, construído no mesmo local onde até meses antes ainda funcionava o Circo Olympico, fundado em 1857.
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Em sentido horário: Dante, Petrarca, Raphael, Beccaria, Filangieri e Michelângelo |
Para enaltecer o trágico, resenhavam-se séculos de cultura e sabedoria italianas. Para os jornalistas, Rossi era “filho dessa terra abençoada de poetas e gênios, onde Miguel Ângelo no mármore e Raphael em preciosas telas deixaram monumentos mais perduráveis que o bronze, onde Dante escreveu a Divina Comédia, Petrarca a bíblia do amor, onde (Gaetano) Filangieri, (Cesare) Beccaria e o grande (Pellegrino) Rossi da ciência traçaram o campo da jurisprudência criminal, onde (Vincenzo) Bellini roubou ao céu a partitura da Norma e (Gaetano) Donizetti sonhou a Favorita”. (JT, 9/5/71)
O Brasil era (e ainda é) uma nação na infância de sua intelectualidade e de seus valores artísticos. A Europa significava o berço da inteligência mundial e a fonte onde todos hauriam seu conhecimento. Logo, o fato de Rossi ter sido aclamado unanimemente não apenas em seu país, mas em nações como a Espanha, Portugal e sobretudo a França, representava o galardão de sua carreira e uma chancela dourada para sua visita:
Ernesto Rossi é o mais robusto gênio dramático do teatro contemporâneo. A França, que é o país onde se sanciona a inteligência de todos os outros países, recebeu-o como se propunham os antigos a receber o celebrado Messias. A literatura francesa veio receber o santo e a senha da boca inspirada do trágico italiano. A imprensa dirigida por Théophile Gautier, (Sylvestre de) Sacy, (Jacques) Texier, Albonie Second (não consegui apurar de quem se trata) e as brilhantes falanges da crítica universal bradaram a uma só voz, coroando o atleta do teatro. (DRJ, 19/2/71)
O grande Théophile Gautier, que morreria no ano seguinte à temporada de Rossi no Rio
Onde cabe a imprensa francesa tem que caber toda a imprensa européia:
A mais original e insaciável expectativa assombra-se em face do seu gênio. (...) As opiniões de Théodore Anne, Etienne Arago, Théophile Gautier, Jules Janin, Xavier Aubryet, Paul Foucher, Hippolyte Lucas, Paul Ferry, Henri de Pène, Louis Ulbach, em Paris; de Júlio César Machado, Ramalho Ortigão, Latino Coelho, Pinheiro Chagas, (José da Silva) Mendes Leal e (Ernesto) Biester, em Portugal; de Javier de Bona, Ramon Ginesta, Miguel Badia, na Espanha, não divergem; cada qual exalta mais o triunfante artista italiano, de cujos lábios iluminados pela mais rara e santa inspiração destilam-se as palavras e os sublimes pensamentos dos grandes mestres e incutem-se como uma revelação divina no âmago do coração do povo. (DRJ, 12/4/71)
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Rossi |
Análises como essa, ou comentários como este, referente a Rossi — “Por nossa alma, ávida de encantos e de luz, passará o sopro encantado do grande artista como a palavra da Escritura, fazendo rebentar da terra flores e crenças, entusiasmos e glórias indescritíveis!...” (DRJ, 19/3/71) — ou este — “Surgem, de séculos a séculos, para nobreza e honra da humanidade, certos espíritos extraordinários, corações raros e inteligências sobre-humanas, que vêm revelar na Terra de modo indiscutível o poder divino. São como que encarnações do verbo celeste, dir-se-ia que o Criador procura esse meio para de novo patentear-se em maior esplendor à criatura absorta. (...) Da França partiu Rossi para várias partes da Europa. Sempre o mesmo séquito, o mesmo delírio, as mesmas palmas, o mesmo assombro irresistível!” (DRJ, 12/4/71) — não eram do agrado de todos. Havia quem se opusesse a esse evidente exagero na adjetivação dos artistas estrangeiros. É curiosa, divertida e inusitadamente acertada a reclamação do articulista de A Comédia Social:
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Adelina Patti |
Pois não andam dizendo e escrevendo que o ator Rossi é o “primeiro trágico do mundo”? Pois já não disseram que Emília Adelaide é um ser sobrenatural, divino, aéreo e até ultragasoso? E quem? Aqueles próprios que só crêem na religião da carne, e que confundem de contínuo o mérito artístico com os dotes comuns a toda a mulher bela. E não digam que menosprezamos o grande talento de Emília Adelaide, não; o que não queremos são exagerações prejudiciais ao progresso da crítica. Quando aqui chegou a irmã de Carlotta Patti (a soprano Adelina Patti), foi recebida com tanto estrondo que houve quem acreditasse ter ouvido a primeira cantora do universo. Até a alfândega ficou aberta num domingo, para receber e revistar-lhe a bagagem. Dias depois o público tinha antipatizado com ela, porque reconhecera que a célebre Patti era a irmã. Quanto a Rossi, digamo-lo, é um artista de excelente escola e de bom método; mas que sua reputação seja universal, não; apenas assombra a quem não viu melhor. (6/4/71)
Melhor do que isso foi o esplêndido quiproquó de sua quase chegada, porque alguém anunciou que Rossi estava no paquete “Amazone” e aportaria em águas fluminenses no dia 14 de abril. Duas sociedades de beneficência italiana se uniram, convidaram jornalistas e amigos, contrataram uma banda de música e alugaram uma balsa para levar todos à bordo, afim de receber o ator com grande festa. Quando chegaram ao navio, não havia nem sinal de Rossi. Encontraram, porém, quarenta veteranos italianos e franceses da guerra franco-prussiana, que estava em sua reta final. (DN, 15/4/71) Guimarães Junior preferiu rir do engano: “Se Rossi abicasse às nossas praias no dia marcado pelo anúncio, perderia para mim um dos lados mais característicos do gênio: o imprevisto! (...) Mas... Rossi não veio! Rossi não quis vir ainda! O suplício de Tântalo na mitologia é quase isso! O homem perto da água sem a poder beber; o fruto junto à mão e fugindo sempre quando se o quer pegar!” (DRJ, 16/4/71)
Rossi na verdade vinha no paquete “Galatéa”, que deixara Lisboa no dia 1º de abril. Mas quando o navio já se encontrava em águas brasileiras apresentou um defeito na hélice do motor a vapor e o comandante achou por bem aportar em Recife e ficar lá por alguns dias, enquanto se procedia o conserto necessário. Quando a notícia de que Rossi estava a bordo se espalhou, as autoridades pernambucanas imediatamente foram receber o trágico, fornecendo a ele e à sua companhia hospedagem condigna. Maravilhados com a presença ilustríssima, inesperada e inteiramente acidental do maior trágico do mundo, sondaram-no sobre a possibilidade dele se apresentar naquela capital, sob os auspícios do governo da província. Como disse mais tarde um cronista local, o defeito “proporcionou-nos ocasião que ninguém sabe se, nem quando, teríamos de prestar homenagem ao rival de Talma” (DRJ, 13/5/71). Houve consenso e ficou marcada para o dia 26 uma apresentação única do Cid, de Corneille, com a tradução de Giuseppe Greatti, e de uma comédia de um ato com Leopoldo Vestri, no Teatro da Zarzuela Espanhola. Tudo precedido por “uma brilhante ouvertura” executada pela orquestra do Maestro Francisco Libânio Colás (1830/1885).
Propaganda da apresentação de Rossi em Pernambuco (Jornal do Recife, 26/4/1871) |
Curiosamente, era tal a dificuldade de comunicação entre as províncias de um país tão imenso, que no dia 26 de abril, enquanto os jornais pernambucanos anunciavam com inaudita satisfação o espetáculo que ocorreria naquela noite, eis o que dizia nota pra lá de mórbida do Diário de Notícias fluminense: “Está dando cuidado o vapor Galatéa, que conduz o trágico Rossi, e a sua companhia, e que saiu de Lisboa no primeiro do corrente. A não ter arribado esse vapor, grande desgraça lhe aconteceu”.
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Diogo Cavalcanti de Albuquerque |
O dia 26 de abril de 1871 marca a estréia de Ernesto Rossi no Brasil e na América do Sul. Contando com a presença do presidente da província, Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque, no teatro, o trágico deslumbrou a ávida platéia pernambucana com a tragédia do “Cid Campeador”. Houve inúmeras cortinas no fim de sua apresentação e novamente no fim da comédia protagonizada por Vestri. Quando a companhia se reuniu para a ovação final houve uma chuva de “lindos ramalhetes de flores naturais”. O baiano Plínio de Lima, contemporâneo de Castro Alves e Ruy Barbosa no Largo São Francisco, e, aos 25 anos, um poeta estimado e promissor (que a morte infelizmente levaria dois anos depois, sem que ele tivesse lançado sequer um livro), improvisou uma saudação a Rossi, que foi muito aplaudida e que o trágico “agradeceu por gestos significativos” (JR, 28/4/71):
A ROSSI
Improviso
Esta fronte curvada sobre os louros
Que nos deslumbra de celeste luz,
É o trono do Belo, o sol das almas,
Com que teu nome às multidões se luz.
O êxtase, o delírio, o pranto, a glória,
Tudo teu gênio sobre nós lançou.
Tu és a arte’splêndida e divina
— Último arrojo que o ideal sonhou.
És a estátua animada da tragédia,
O gênio da paixão... da dor talvez.
Tu tens a alma transbordando glórias,
Tu tens dois mundos te beijando os pés.
A imprensa registrou entusiasticamente o que significou ter Rossi na modesta e tranqüila Pernambuco²:
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Plínio de Lima |
A noite de 26 de abril marca de agora em diante uma data gloriosa para o nosso teatro. Sobre o palco pernambucano apareceu entre calorosos aplausos Ernesto Rossi, o notável trágico, a celebridade artística, que o mundo inteiro reconhece e proclama. Por mais prevenidos que estivessem todos, foi a expectativa pública excedida muito além do que esperava, conhecendo pela primeira vez o verdadeiro valor da arte sublime e transcendental que imortalizou Talma, Modena e Kean. Não cabe nos acanhados limites de uma notícia, uma apreciação circunstanciada do espetáculo de ante-ontem no pavilhão de Santa Isabel, e por isto o resumiremos em mais uma vitória para o ilustre trágico na justa e entusiástica apreciação de um público desconhecido, o primeiro que o saudou na América do Sul, com toda a espontaneidade que desperta n’alma o verdadeiro merecimento. (JR, 28/4/71)
Celestina Paladini e Leopoldo Vestri também foram muito elogiados: “Em primeiro lugar falaremos da Sra. Paladini, cujo mérito é incontestavelmente superior, cujo trabalho é sempre magistralmente executado. É uma atriz de primeira força que desempenha exímia e perfeitamente o seu papel, dando-lhe a vida que só o gênio sabe lhe comunicar. A Sra. Paladini não desmerece o grande ator. Em seu gênero é o Sr. Vestri igualmente um ator consumado; e só quem o não tiver visto nas espirituosas comédias em que figurou poderá dar a outrem as palmas que incontestavelmente merece”. (O Americano, 30/4/71)
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Celestina de Paladini, em fotografia de 1869 |
O cronista do Diário de Pernambuco foi bem mais verboso: “O desempenho correu sublime de esplendor, e nem era lícito esperar menos de artistas em quem se refletem os raios luminosos de um mestre que com razão enche de pasmo, extasia e comove até as lágrimas, todos quantos têm a ventura de o ouvir e o ver no palco”. A frase seguinte, além de hiperbólica, foi de um inegável mau gosto e provocou revolta nos círculos intelectuais do Rio, quando a publicação lá chegou, finalmente, dez dias depois:
O Sr. Rossi, o imortal triunfo do gênio da tragédia, é grande como um colosso. João Caetano, o artista trágico brasileiro por excelência, era grande; mas junto de Rossi seria um pigmeu, tal é o talento, tal é o conjunto harmonioso de dotes com que a natureza e o estudo, em fraternal amplexo, mimosearam-no, engrandeceram-no, sublimaram-no para o palco, criando-o o assombro das almas, que o admiram, e que se prendem à sua por esse fio elétrico misterioso que se chama sentimento, e que só é movido pelo belo e grande artístico, pelo gênio, que é uma emanação de Deus. (DP, 28/4/71 apud JT, 5/5/71)
O texto segue, longo, com uma análise até interessante da peça, mas a comparação desastrada e inteiramente desnecessária com João Caetano foi só no que todo mundo reparou, e suscitou respostas imediatas na capital do Império. Assim, Rossi não havia sequer estreado ainda no Lyrico e já havia uma polêmica paralela à sua chegada acontecendo em alguns órgãos da imprensa:
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João Caetano |
Diz o Diário de Pernambuco: João Caetano era grande, mas comparado a Rossi, é apenas um pigmeu. Ficam consignadas estas palavras, menos para a aferição do gênio do artista que entre nós se acha, que para a vergonha daqueles que, para saudarem as glórias de hoje, não duvidam desdourar as de ontem, e se não lembram que, na profanação de um túmulo, vai a profanação da pátria. É inepto estabelecer-se paralelo entre o artista inculto, filho unicamente do seu gênio e da natureza, e o artista educado pela teoria das escolas e a prática dos bons exemplos, com todos os recursos da arte e abundâncias da inteligência. Rossi vale muito, vale, por certo, muito mais do que pode imaginar o espírito pequeno do redator do Diário de Pernambuco, e, para que sua estrela possa fulgir, não necessita que apaguemos o brilho da única estrela dramática, que cintila no céu das nossas glórias. (O Guarany, 6/5/71)
O dramaturgo e jornalista França Junior (1838/1890), que escrevia para o Jornal da Tarde, pegou uma carona lírica nessa dicotomia:
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França Junior |
Digam, embora, pretendidos críticos, que o nosso Talma seria um “pigmeu” ao lado do eminente italiano, eu sustentarei que entre os dois não há essa grande distância que querem enxergar. Nasce uma pobre flor entre duas pedras. O santo orvalho do céu não umedece-lhe as pétalas, o sol desvia da mísera os raios benéficos, a natureza não lhe sorri em torno, benfazeja mão jamais cultivou o terreno onde ela brotou. E no entretanto a desditosa viceja, seu tronco reverdece, suas folha acetinadas procuram atrair os beijos das brisas e sua corola busca as pérolas do céu e os raios do sol! João Caetano foi a flor sem cultura, e que no entanto inebriava os sentidos com ignotos perfumes. Ele cantava, como gorjeia o passarinho da selva sem jamais ter cursado as aulas do conservatório. Rossi é a linda flor dos jardins, cultivada com esmero pela mão da arte e da civilização. Ligados pelo mesmo gênio, um arrebata as platéias com consciência plena do que faz, o outro levantava as massas, inspirado apenas pelo fogo sagrado que o animava. (9/5/71)
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João Caetano, no papel de "Oscar, o filho de Ossian", de Antoine Vicent Arnault (1766/1834) |
Era, pois, certo que João Caetano possuía na peregrina alma a réstia celestial!! Era, pois, evidente que o método, o trabalho e o estudo fariam daquele nobre ator, tão cedo roubado aos louros e aos triunfos do palco, um dos verdadeiros representantes da arte no seu mais puro ideal. Ernesto Rossi é o diamante polido, lapidado, claro de mil facetas cintilantes, onde a luz reflete infinitesimamente e que ilumina tudo em que toca de passagem! Pois bem; é esse o fulgor que nos faz pressentir os raios admiráveis, que o engenho de João Caetano, pedra mal lapidada e quase abandonada à sua misteriosa germinação, faria derramar um dia, se a mão paternal do estudo e dos grandes mestres polissem-na, divinizassem-na, imortalizando-a para nós e para o mundo! (DRJ, 11/5/71)
Algo atrasado, apareceu na contenda o médico José Joaquim Vieira Souto, provavelmente irmão pouco célebre do engenheiro Luiz Raphael Vieira Souto (1849/1922), que dá nome à famosa avenida carioca. Tradutor de algumas peças e patrioteiro de maus bofes, sua defesa de João Caetano é tão histérica que ele acaba cometendo o mesmo erro do articulista pernambucano, só que favorecendo o lado do brasileiro. Começa dizendo que Rossi “é em extremo exagerado” e só merece encômios “na escola realista”, “mas daí a julgá-lo o non plus ultra da arte dramática, vai também muita diferença”. Termina tentando desmontar até mesmo o argumento de França Junior e dos outros que descreveram Caetano como uma espécie de “primo pobre” de Rossi:
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Jacques Arago (1790/1855), escritor e artista plástico. Autor de "L'Éclat de rire" e amigo pessoal de João Caetano, morreu na casa deste, em 27 de novembro de 1855 |
Para o bem do teatro e da paciência dos leitores, o comentário infeliz do cronista pernambucano foi esquecido e o assunto na ordem do dia passou a ser a chegada de Rossi. Mas o fantasma de João Caetano — no melhor estilo de Shakespeare — seguiria presente nesse início de temporada, sobretudo quando se anunciou que a estréia oficial de Rossi seria com a peça Kean, de Alexandre Dumas, que o brasileiro levara, anos antes.
O Galatéa aportaria no Rio sem contratempos na primeira semana de maio. A falta de costume em receber estrelas internacionais e as conseqüentes mancadas decorrentes disso já haviam causado a “recepção que não houve”, dias antes. O vilão da vez era Thomaz Rainey, o diretor da empresa de balsas. As mesmas sociedades de italianos que organizaram a primeira recepção estavam agora às voltas com a falta de uma balsa suficientemente confortável para trazer Rossi à terra firme. A balsa que o diretor oferecia não tinha sequer um toldo para proteger Rossi do calor de 40 graus que fritava os cariocas naquele outono escaldante. Na sexta feira, 5 de maio, foram todos buscar Rossi. Guimarães Junior estava entre eles e sua satisfação de conhecer Rossi de perto foi tanta que ele descreveu a caravana com delicioso bom humor:
Uma coisa estava eu na dúvida se poderia ser realizada um dia, e essa coisa era uma serenata ao sol, uma serenata tropical, uma serenata... para torrar gondoleiros e guitarras, pondo-os em condição de perfeitas roscas! Ir em uma barca excelentemente coberta e livre dos raios do dia abrasador, receber um ente privilegiado como Rossi, à semelhança da família dos burgueses em visita de compadres, isso seria vulgar, chato, sem préstimo, sem poesia, sem originalidade e... sem suor! (...) Os botes vieram receber-nos, a nós e à banda de música italiana, começando por despirem-se de toldos, o que foi de uma admirável penetração napolitana! Os músicos, rubros e de olho esgazeado, puseram-se a soprar nos instrumentos abrasados como o fará de verto a orquestra de Vulcano por ocasião da recepção oficial!
E os batéis, ligeiros como uma falange de tartarugas, cortaram a superfície das ondas encolerizadas. Dir-se-ia, a julgar pelo calor de baixo e pelo calor de cima, que nos prontificávamos graciosamente a realizar uma fritada popular, e que chegaríamos ao Galatéa mais como iguaria do que como gente. O deus, porém, que protege os admiradores da arte e do talento, conduziu-nos, mal assados apenas, aos braços do grande trágico, cuja individualidade conseguimos trazer à terra em uma das ambulantes frigideiras completamente são e... cru! Oh!, mas como foi belo, como foi irradiante o nosso passeio! A deliciosa banda italiana fazia reboar nos ares iluminados as fogosas harmonias dos seus instrumentos febris! Nas vergas dos navios que abeirávamos dependuravam-se os marinheiros corados e alegres, agitando-nos o festivo barrete!
Preciosa a descrição que Guimarães faz, a seguir, de Rossi, como um homem gentil e humilde, e os conceitos que expende sobre o caráter frívolo e convencido das celebridades vazias, que já naquela época ocupavam espaço que não merecem:
Preciosa a descrição que Guimarães faz, a seguir, de Rossi, como um homem gentil e humilde, e os conceitos que expende sobre o caráter frívolo e convencido das celebridades vazias, que já naquela época ocupavam espaço que não merecem:
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Ernesto Rossi |
A bordo vi Ernesto Rossi, desde que descansei o pé no tombadilho. Nem seria de admirar a minha descoberta, porque Kean e Hamleto destaca-se no meio de todos os entes humanos que o cercam como um semi-deus no seu cortejo mitológico! É um formoso homem e um cavalheiro simpático da ponta dos pés aos suntuosos cabelos louros!
Para ele o talento, a notabilidade do sentimento e a força do gênio, com que o brindou a natureza em um dia de rara prodigalidade, não significam uma barreira atirada entre o artista e o resto dos homens, como muito geniosinho do meu conhecimento acredita e realiza! O seu público, a sua glória, o seu triunfo, Rossi tem-nos no mais elevado grau de consideração e entusiasmo. Aperta a mão que se lhe estende na certeza de que essa mão o vitoriará cem vezes feliz, quando no palco o artista acordar na alma eletrizada do povo as centelhas do entusiasmo e da espontânea ovação!
Assim deve ser o artista verdadeiro e o verdadeiro talento. As reputações de cinco minutos é que se vestem de uma atmosfera de orgulho e vaidade e impõem-se aos contemporâneos com a mesma altivez do anúncio de quatro metros de altura... que dá notícia ao público respeitável da próxima representação de ratos indianos! (...) O mérito real não se explica. Eis porque quando eu vi aquela brilhante cabeça e aqueles bigodes sentimentais dignos de Romeu e de Shakespeare, exclamei:
— É o Rossi, não há dúvida! (DRJ, 7/5/71)
[1] O casal iniciaria
verdadeira dinastia teatral. Eram pais de Olympia Montani, que casou-se com
Álvaro Peres e dessa união nasceu a grande Lucília Peres. Viúva de Montani,
Balbina casou-se com Joaquim da Costa Maia, e dessa união nasceu Abigail Maia,
tia de Lucília, com quem regulava de idade e ao mesmo tempo rivalizava pelo
posto de maior atriz do início do século XX.
[2] Há referências (Rivista Europea, O Americano, 30/4/71, O Guarany, 6/5/71) de que Rossi também apresentou em Recife o Oreste, de Alfieri e o Sullivan, de Mélesville (Anne-Honoré-Joseph Duveyrier, 1787/1865). Só encontramos notícias do Cid. Se essas performances de fato ocorreram, foram todas na mesma noite e não passaram de encenações mais recitadas do que interpretadas, pois imagina-se que não haveria tempo ou conveniência para montar e desmontar toda a luxuosa parafernália de cenários e figurinos da companhia italiana.
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[2] Há referências (Rivista Europea, O Americano, 30/4/71, O Guarany, 6/5/71) de que Rossi também apresentou em Recife o Oreste, de Alfieri e o Sullivan, de Mélesville (Anne-Honoré-Joseph Duveyrier, 1787/1865). Só encontramos notícias do Cid. Se essas performances de fato ocorreram, foram todas na mesma noite e não passaram de encenações mais recitadas do que interpretadas, pois imagina-se que não haveria tempo ou conveniência para montar e desmontar toda a luxuosa parafernália de cenários e figurinos da companhia italiana.
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BIBLIOGRAFIA
- A Comédia Social
- A Vida Fluminense
- O Americano
- O Guarany
- O Mundo da Lua (ML)
- Semana Ilustrada (SI)
- A Reforma (AR)
- Diário de Notícias (DN)
- Diário do Rio de Janeiro (DRJ)
- Jornal da Tarde (JT)
- Jornal de Recife (JR)
- Jornal do Comércio
- AMARAL, Antônio Barreto do. História dos Velhos Teatros de São Paulo. São Paulo, Governo de SP, 1979.
- Biblioteca Nacional Digital
- BRANCO, Camillo Castello. Eusébio Macário. Porto, Lélo & Irmão, 6ª ed., 1887.
- FERREIRA, Procópio. O Ator Vasques. Rio de Janeiro, Funarte, 2ª edição, 1979.
- Revista Philomatica
- RHINOW, Daniela. Visões de Otelo na cena e na literatura dramática nacional do século XIX (Vols. I e II). São Paulo, USP, 2007
- Rivista Europea (Volume III). Firenze, Tipografia dell'Associazione, 1871.
- Teatros do Centro Histórico do Rio de Janeiro
- Agradecimento a Reinaldo Elias.
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